sábado, 3 de dezembro de 2011

Primeira Época. Fundamentos da Idade Média. Época dos Merovingios. 35. Os dois Poderes do Futuro: Os Francos e o Papado. Gregório Magno.

Primeira Época.



Fundamentos da Idade Média. Época dos Merovingios.

35. Os dois Poderes do Futuro:


Os Francos e o Papado. Gregório Magno.



Traduzido pelo Presbítero Pedro Anacleto



I. A Igreja dos Francos.

1. De todas as tribos germânicas estabelecidas no território do Império Romano houve uma que se colocou à cabeça e dominou o futuro graças ao Estado por ela criado: os francos. Duas circunstâncias foram decisivas: a) os francos foram (junto com os frisões e os bávaros) os únicos germanos que, por não proceder de terras longínquas, senão por serem mais bem vizinhos imediatos, recolheram a herança do Império Romano, em parte penetrando pacificamente, em parte combatendo; não chegaram, por assim dizer, a abandonar sua pátria; b) porém a maioria dos outros germanos receberam o cristianismo primeiramente como arianismo, eles o receberam de imediato em sua forma ortodoxa. Isto os permitiu integrarem-se em uma unidade com a população romana nativa, que era ortodoxa. A falta desta indispensável unidade cristã foi uma das causas da queda dos Estados germânicos arianos.

2. O fundador do reino dos francos foi o merovíngio Clóvis (482-511), um príncipe dos francos sálicos, na atual Bélgica. Ele e seus filhos estenderam tanto suas conquistas, que quase chegaram a ocupar toda a Gália, ou seja, um país que já era cristão 1.

O batismo de Clóvis (498 ou 499) esteve preparado por sua experiência do poder do Deus dos cristãos na guerra dos alemães e por sua mulher, católica, Crotequilda (Clotilde); também contribuiu a convivência por algumas décadas dos vitoriosos francos com os católicos galos. Clóvis reconheceu a superioridade religiosa e cultural do cristianismo e as vantagens políticas que este podia aportar a seu império (unidade; apoio interno graças ao poder e autoridade dos bispos). O povo franco ajudou a conversão do rei sem maiores reparos: o cristianismo havia já produzido seu efeito; o paganismo como profissão de fé já não tinha firmes raízes. Com tudo isto, porém, ainda não se tem dito quase nada da profundidade religiosa da nova profissão de fé.

Não foi tão óbvio, desde logo, que Clóvis e seus francos aceitassem o cristianismo na forma ortodoxa. Os germanos que invadiram o império formavam já, precisamente por seu arianismo, uma certa unidade. Desde este ponto de vista, o Império Romano cristão ortodoxo não deixava de ser, e de uma forma especial, o inimigo comum, ou seja, justamente por isso o inimigo número um dos francos. Além de que Chilperico, rei dos burgundios e sogro de Clóvis, era ariano. Que sua mulher, Clotilde, fosse cristã ortodoxa se devia a que havia sido educada em Genebra na corte de seu tio (donde havia burgundios que permaneceram católicos desde o tempo da primeira conversão). Duas irmãs de Clóvis se fizeram arianas; por uma delas, Audofleda, o rei ariano dos ostrogodos, Teodorico, se converteu em cunhado de Clóvis. O arianismo era a força religiosa predominante no centro da Europa. A decisão de Clóvis, pois, foi contrária ao curso natural das forças da constelação política; deve atribuir-se, grifando, exclusivamente a ele. Por outra parte, as considerações políticas também contribuíram com um papel no sentido de que a aceitação da fé ortodoxa assegurava aos francos a simpatia dos galo-romanos ortodoxos.

O batismo de Clóvis teve incalculáveis repercussões na história da Igreja; a primeira conseqüência foi nada menos que a cristianização na forma ortodoxa das outras tribos germânicas anexadas a seu império pelos francos; surgiu uma Igreja nacional franca; dela foram cristianizados os novos territórios do império franco à direita do Reno (hesienses, turingios, bávaros, alamães), todavia pagãos ou semi-pagãos. Mais tarde, com Dagoberto (+ 639), caíram também os frisões sob a influência da missão católica.

Com o crescimento do Império Franco desde o leste, dentro da atual Alemanha, foi aparecendo pouco a pouco, e cada vez mais clara, certa diferença cultural entre a parte oriental, Austrasia, quase puramente germânica, e a ocidental, Neustria. Aqui (aproximadamente a atual França) os germanos se fundiram com a população nativa galo-romana, formando um único povo românico, e a língua materna germânica, ao mesclar-se com o latim, se converteria em uma língua românica: o francês. (Não há que perder de vista que a aristocracia, sobre a que se baseou a França posterior, era em grande parte de ascendência germânica; mas também aqui se mesclou muito logo o sangue por causa dos matrimônios entre francos e mulheres românicas).

3. Neste Império dos merovíngios francos, o curso dos acontecimentos histórico-eclesiásticos, seu florescimento e decadência dependeu essencialmente da constituição da Igreja nacional ou territorial.

a) Uma primeira característica da Igreja territorial foi sua clausura para o exterior: os limites eclesiásticos se correspondiam com os políticos (inclusive dentro das partes do reino), ou seja, nenhuma zona do império podia estar submetida a um bispado ou uma diocese metropolitana exterior. Sempre que as conquistas merovíngias avançavam até uma zona eclesiástica estranha tinha que modificar a antiga divisão da diocese.

Ainda que a Igreja territorial também estivesse radicalmente isolada sob o aspecto jurisdicional, nem por isso quebrou a unidade moral da cristandade: precisamente as últimas investigações sobre o patrocínio tem constatado a enorme difusão do culto a São Pedro e aos apóstolos na Gália antiga e na Gália franca. A Igreja territorial sabia que também se encontrava ligada à unidade da doutrina.

À clausura ao exterior correspondia uma rigorosa organização da Igreja no interior, e isto sob a autoritária direção dos mesmos reis, que nisto imitavam em parte a postura dos imperadores romanos antigos e orientais e em parte seguiam as velhas tradições germânicas (culto da estirpe e sacerdócio dos reis). Assim, pois, o rei era quem convocava os concílios merovíngios imperiais ou nacionais, decidia os temas a tratar e promulgava os cânones que o praziam como leis obrigatórias do império. A diferença do que acontecia nos reinos visigodos, o episcopado franco só conseguiu na mínima parte que se o encomendasse à supervisão da ordem jurídica e de outros afazeres públicos. Porém, a Igreja influiu poderosamente na vida pública por sua ação caritativa e social, pelo direito de asilo (os criminosos que buscavam amparo no templo não podiam ser castigados nem em seu corpo nem em sua vida) e por sua contribuição à liberação dos servos ou escravos.

O ingresso no estado clerical só era possível com permissão do rei ou do conde, o que, naturalmente, se baseava em considerações fiscais ou militares. Mais decisiva foi a provisão dos bispados pelos reis francos, circunstância que podemos rastrear até os tempos de Clóvis. A eleição dos bispos por parte do clero e do povo, que os concílios sempre haviam exigido, não ficava ao todo excluída, mas só significava uma proposta que o rei podia aceitar ou rejeitar. Como já denunciou Gregório de Tours, isto não era senão um princípio de simonía, porque tanto o eleito como os eleitores, pelo geral, corriam a obter o favor real mediante valiosos obséquios. O rei podia, porém, nomear bispos diretamente, com o qual sua eleição recaiu a pouco sobre seculares, como também a concessão de benefícios eclesiásticos se deveu muitas vezes a motivos políticos. Do rei Chilperico se disse que sob seu reinado foram poucos os clérigos que alcançaram a dignidade episcopal.

b) Dada esta profunda dependência, a reação do episcopado contra o governo da Igreja por parte do rei nunca chegou a ser unitária. A resistência dos bispos, que nunca deixou de fazer-se sentir, não acabou por concretizar-se em uma oposição radical, ao qual também se deveu, entre outras razões, a que os reis francos — exceção feita de uma tentativa de Chilperico I — nunca se intrometeram no campo da doutrina de fé.

Em geral, ninguém pensou em discutir a posição dos reis na Igreja, pois se entendia que suas funções eram um modo de protegê-la; proteção que não era só um direito dos reis, senão também um dever. Os bispos, porém, foram ainda mais além, chegando a louvar o "espírito sacerdotal" de Clóvis, como fizeram os padres conciliares reunidos em Órleans no ano 511, ou chegando a apelar às instruções do rei, como fez Remígio de Reims, porque ao rei se devia obediência como pregador e defensor da fé. Venâncio Fortunato chamou ao rei Childeberto "nosso rei e sacerdote Melquisedec, porque levou a seu cumprimento como secular a obra da religião."

Por outra parte, o episcopado nunca esteve incondicionalmente submetido ao rei. Os sínodos colocavam na face dos reis seus pecados e o bispo São Germano de Paris chegou inclusive a excomungar o rei Chariberto por seu matrimônio com uma virgem consagrada a Deus.

Mas, naturalmente, a crítica ao poder e à majestade do rei logo chegou a um limite, como testemunha o mesmo São Gregório de Tours: "Se um de nós quisera abandonar o caminho da justiça, poderia ser repreendido por ti. Mas se tu cais no erro, quem poderá então censurar-te? Nós te falamos, mas tu somente nos escutas quando queres...."

Até o mesmo Papa São Gregório Magno se adaptou às circunstâncias quando em escritos elogiosos e ponderados se dirigiu à rainha Brunequilda, cruel e sem escrúpulos, para induzi-la à reforma da Igreja Franca.

4. Em tempos de Clóvis, de suas filhas e seus netos, as condições da Igreja territorial franca evoluíram favoravelmente no essencial. Mas seus sucessores, desde Dagoberto (+ 639), não foram capazes de manterem a obra à mesma altura.

a) As desavenças e a incapacidade (por exemplo, as formas primitivas de administração) causaram grave prejuízo ao Império Franco e à sua Igreja. É certo que ainda se mantinha em boa parte a mesma organização das dioceses dos tempos romanos. Mas as mencionadas tendências fizeram efeitos nocivos: em vez do sentimento comunitário e do serviço sem discriminações, o que se manifestou foi um insano egoísmo. O roubo em conventos, bispados e paróquias foi intensamente praticado desde o rei até o último arrendatário de bens eclesiásticos (para mais detalhes, cf. § 39).

No período de formação do Estado Franco, a Igreja representou uma grande força moral, que se manifestou especialmente na influência dos bispos (caráter sagrado; representante das antigas tradições; conhecedor da administração; cáritas) sobre a população nativa. Os soberanos merovíngios quiseram utilizar esta força para o serviço do Estado, isto é, de si mesmos. E aqui, sem dúvida, houve evidente perigo para a vida sacramental e a pregação da palavra. Mas, por cima de tudo, o decisivo era se o ministério episcopal se exercitava ou não com a necessária liberdade religiosa e missionária.

b) O fato de que tal perigo não chegasse a constituir uma ameaça vital se deve a que ainda estava vigente a concepção do ministério episcopal dos tempos romanos. Em começos do século VII, o fortalecimento do Império merovíngio trouxe consigo, por pouco tempo, uma melhora da situação da Igreja Franca. Houve sínodos em Neustria, Austria, Burgundia. O mais importante foi, sem dúvida, o sínodo imperial do ano 614, que aprovou importantes cânones reformistas, como, por exemplo, sobre a eleição canônica do bispo, que ao parecer estiveram vigentes durante algum tempo, por suposto sem necessidade de derrogar a aprovação real. Surpreendentemente houve por então muitos santos, cuja força de edificação espiritual não deve em absoluto atribuir-se só à Igreja Franca (cf. § 39).

A decadência da Igreja Franca, iniciada com a dissolução do reino depois da morte de Dagoberto, durou todo um século. No Império do Oriente, o processo de cristianização (cf. § 37) e a evangelização se detiveram; os frisões, ao recuperar a liberdade política, retornaram completamente ao paganismo.

c) O novo reforço político foi obra dos mordomos francos, principalmente de Pepino de Heristal (+ 714) e seu filho Carlos Martel (+ 741). Mas a situação da Igreja sob Carlos Martel, de vida precisamente não muito cristã, se tornou bastante insegura pelos perigos antes mencionados (houve roubos de bens eclesiásticos a favor dos nobres, seus partidários políticos; um parente de Carlos Martel recebeu, junto com o arcebispado de Ruan, os bispados de Paris e Bayeux, assim como as abadias de São Wandrille e de Jumièges, como conseqüência da secularização de bispos e abades). Restabelecer a ordem e instalar a reforma interna da igreja foi tarefa reservada, à parte da iniciativa de seus filhos (primeiramente o piedoso Carlos Magno, que logo entrou em um convento, e mais tarde Pepino), aos missionários da Igreja anglo-saxônica.



II. O Papado.

1. Nos duros e belicosos tempos de confusão dos séculos VI e VII, como as fronteiras variavam continuamente e a pressão dos avanços germanos se fazia sentir cada vez mais forte no interior da Itália, resultava muito difícil estabelecer contacto de Roma com os longínquos católicos do norte. As comunicações costumavam serem muito raras. É um impressionante sinal da indestrutível força da Igreja o fato de que, apesar de estar imersa na barbárie daqueles tempos e, governada em sua maioria por pessoas de pouco relevo, não faltasse o ânimo nem a capacidade para prosseguir, ao menos em certa medida, sua tarefa missionária nos pontos mais importantes e mais carregados do futuro e lograr resultados significativos.

2. O Papa São Gregório Magno (590-604) é o homem que por seus méritos históricos deve ser mencionado antes que todos os demais. Tão importante como o último grande Papa da Antigüidade decadente (São Leão Magno, § 24), São Gregório Magno é o primeiro grande Papa do novo mundo que desperta. Sua obra foi decisiva para toda a Idade Média. Uma realidade absolutamente fundamental para toda a evolução eclesiástica no Ocidente foram as Igrejas territoriais germânicas. Gregório, o romano, reconheceu que aqui aproximava um perigo de enormes conseqüências; a Igreja universal podia ver-se ameaçada pela separação. Tanto mais quanto que não se podia prescindir da organização das Igrejas territoriais nem se devia renunciar a ela em interesse precisamente da cristianização. A obra do Papa São Gregório marcou uma pauta efetiva de solução: teria que alcançar o objetivo já presente na Antigüidade eclesiástica, sem ao qual não haveria tido nem Idade Média nem uma Igreja universal tal como a temos hoje: era preciso que o sucessor de São Pedro dirigisse a toda a hierarquia com maior rigor. Ainda que a colheita imediata não correspondeu à semeadura desse grande homem, desde o ponto de vista histórico não resulta correto dizer que já neste primeiro Gregório transluz a grande idéia de um Império cristão ocidental, muito antes de que Carlos Magno ou inclusive Gregório VII revelarem seus programas. É de suma importância religiosa para a história da Igreja o fato de que, em uma situação de debilidade política tão desesperada — ainda que não carente de prudência política e econômico-administrativa — surgira uma nova (e espiritualizada) idéia de Roma e fora realizada essencialmente pelas forças da fé.

3. Foram aqueles uns tempos caóticos para Itália. Poucas décadas haviam transcorrido desde que Justiniano, em uma devastadora guerra de dezoito anos (535-553), tirou a Itália dos godos arianos, aniquilando-os. Roma havia sido sitiada repetidas vezes 2. Os Impérios do Oriente e do Ocidente se uniram de novo. No ano 554 chegou a Ravena um governador bizantino (exarca) como chefe político do país (também do papa). Residiu ali uns duzentos anos. (N.T. não este governador, mas a duração do exarcado bizantino em Ravena)

Mas já em 568 chegaram à Itália os longobardos arianos (a última tribo puramente germânica que se firmou em território romano), ameaçando continuamente a Roma e com isto a independência do papa. Durante um século e meio subsistiu o perigo de que o papa descesse à categoria de bispo territorial longobardo.

4. Quando se busca uma razão capaz de explicar os caracteres pessoais do Papa Gregório, a estrutura de seu programa e a possibilidade de seus êxitos, não se dá outra que sua romanidade. Romanidade significa aqui nem tanto cultura romana como sabedoria romana e rica humanidade; São Gregório queria que os subordinados fossem tratados como homens adultos: "Nós homens somos todos iguais por natureza." São Gregório, foi herdeiro da arte do governo da antiga Roma (havia aprendido e exercitado em sua anterior carreira ao serviço do Estado), que tão genialmente havia sabido atrair-se e governar sob um governo unitário a povos de tão distinta raça e tão longínquo lugares, respeitando sabiamente suas peculiaridades; uma atitude que no monge Gregório arraigou ainda mais profundamente pelo influxo da equilibrada regra de São Bento.

Esta romanidade, caracterizada desde o ponto de vista tanto racional como operativo por sua capacidade prática da boa ordem e governo, alcançou em Gregório tão extraordinária profundidade no sentido cristão que nele já não viveu nem frutificou por seu próprio dinamismo, senão pelo cumprimento daquelas exigências cristãs, aparentemente inconcretas, de realizar o lema de Mt 23:11: "o maior de vós seja servidor vosso."

Durante toda sua vida o romano Gregório permaneceu intimamente identificado com a antiga idéia de império e de seu representante, o imperador do Oriente. Mas nem por isso deixou de querer a independência da Igreja. Desde o terraço de seu palácio de Latrão dirigiu pessoalmente a defesa de sua querida pátria, Roma, contra os longobardos. Porém, preferiu (em vez de secundarizar as exigências do imperador e do exarca) conseguir a retirada do rei Agilulfo por meio de um elevado tributo anual. Frente a seus bárbaros e brutais inimigos jamais ocultou seu caráter sacerdotal, tratando de ganhá-los para a verdadeira Fé. Assim obteve ao fim que o fez maior do rei e herdeiro do trono receber o batismo cristão ortodoxo (a mulher do rei Agilulfo, a princesa bávara Teodolinda, era católica).

5. A glória especial de Gregório na história da Igreja provém de sua atividade missionária. Esta esteve particularmente dirigida aos anglo-saxões. Mas ele foi muito consciente da importância e do papel diretivo dos francos. As fontes nos permitem afirmar que a missão britânica se dirigiu indiretamente aos francos. Gregório, em efeito, no ano em que começou a missão da Inglaterra (595), escreveu a Chilperico II, rei da Austrasia, a frase profética: "Como a dignidade do rei supera à de todos os demais homens, assim o esplendor do império (dos francos) excede ao de todos os demais reinos."

a) Ao dar a cada um dos povos de mais além do Mar do Norte uma Igreja estreitamente unida com o centro, com Roma, criou, por assim dizer, dois pólos desde os quais a vida religioso-eclesiástica católica pode abarcar como uma corrente os povos germânicos situados no meio, preparando assim, de forma decisiva, o grande trabalho do futuro. Como autêntico condutor de homens sabia muito bem que da noite para o dia não se pode conseguir uma transformação interior, uma conversão real de todo um povo, e muito menos empregando a força. Por isso defendeu o princípio genuinamente ortodoxo de que na medida do possível há que aceitar os usos e costumes tradicionais dos povos e, em vez de eliminá-los, enchê-los do espírito cristão: "Não se pode acabar tudo aos incultos. Quem quer alcançar a cota mais elevada, sobe passo a passo, não de uma vez."

A inteligência daquelas escassas possibilidades espirituais e psicológicas das missões o levou, por exemplo, a permitir o uso de imagens sagradas (mas não sua adoração religiosa) como meio de instrução para os incultos que no sabiam ler. (Calvino, em seus fervores puritanos, não teve em seu dia compreensão alguma para estas sãs idéias).

b) Nesta mesma linha teve também sua prudente adaptação às circunstâncias eclesiásticas territoriais dos povos germânicos. Apesar das escandalosas anomalias que se davam na Igreja merovíngia (simonía na provisão das sedes episcopais, imoralidade no clero, etc.), respeitou os direitos dos reis enquanto à convocação dos concílios e o cumprimento de seus acordos. Tratou de conseguir a necessária reforma com estes e para estes. Não por própria iniciativa — como tiveram feito muitos de seus predecessores e especialmente seus sucessores —, senão a petição do rei Childeberto, nomeou vigário apostólico ao bispo de Árles. Soube também com perfeição habituar aos germanos à autoridade especial do papa, como, por exemplo, quando enviou ao próprio rei a chave do sepulcro do príncipe dos apóstolos com uma relíquia colocada na corrente levada por São Pedro estando prisioneiro. Apoiado na secreta força da veneração que os germanos sentiam por São Pedro, Gregório se converteu em uma autoridade paterna isenta de todo paternalismo, que pode chamar "filhos" aos poderosos reis bárbaros e como tais corrigi-los no caso de necessidade.

Assim também se comportou com a Igreja visigoda da Espanha, que pouco antes de seu pontificado se havia convertido do arianismo à Fé ortodoxa. A seu amigo São Leandro de Sevilha enviou o pálio, e ao rei Recaredo, em agradecimento por sua declaração de lealdade, algumas preciosas relíquias e um escrito sobre os deveres de um rei cristão. Mas em nenhum momento fez perigar o primado de jurisdição papal planejando exigências inoportunas ou inclusive despóticas.

6. Desta maneira endereçou a missão pelo único caminho frutífero que para bem da cristandade jamais devia ser abandonado: em vez de uma rígida uniformidade segundo o modelo da Igreja-mãe romana, autorizou e pregou uma ampla e prudente adaptação (acomodação) para que a Fé cristã se encarnasse realmente no pensamento e na vida dos novos povos que se aproximavam de Cristo. Deste mesmo espírito estão cheias as palavras que São Gregório dirigiu a Santo Agostinho de Canterbury: "Irmão, tu conheces aos costumes da Igreja romana, na qual tens sido educado e que tu querias conservar. Mas é meu desejo que, quando encontres algo na Igreja romana ou gala ou em qualquer outra Igreja que possa agradar mais a Deus todo-poderoso, seleciones com cuidado e o introduzas na Igreja dos anglos, todavia jovem na fé... Porque os usos e costumes não são estimáveis por seu lugar de origem, senão o lugar de origem por seus usos e costumes. Portanto eleja de todas as Igrejas o que seja piedoso, religioso, correto...."

São Gregório foi um pastor de almas de grande capacidade. O documenta já quanto se tem dito, ainda que tudo isto se refira mais à estrutura externa e à fundamentação formal (naturalmente, sem esquecer as atitudes espirituais de fundo que as determinam). Mas junto a isto e sobre tudo isto — como já se tem dito — foi um homem de grande vida religiosa interior. As raízes mais profundas de sua fortaleza tem de buscar-se em sua piedade, isto é, em sua fé.

Herdeiro de uma rica família renunciou a sua brilhante carreira para entrar (em diferentes etapas 3, por assim dizer) no mosteiro (de beneditinos?) que ele mesmo havia fundado em seu palácio romano. Até o ano 575 já havia formado parte de uma comunidade de vida monástica, mas só depois de seu regresso do apocrisiarado 4 e da fundação de outros seis mosteiros em seus latifúndios na Sicília, renunciou no ano 587 a seus direitos patrimoniais, ainda consideráveis, e se fez definitivamente monge.

Temos que ter muito claro o que isto significa. Mosteiros em Roma! Na Roma dos templos e dos anfiteatros, na Roma em outro tempo dominadora do mundo, monges que desprezavam e fugiam do mundo! E saindo de um mosteiro, equipado com todas as tradições da nobre romanidade, o salvador de Roma, o que deu forma à Igreja universal!

A união do monacato e cura de almas não foi coisa corrente nem no monacato antigo nem no contemporâneo; mas sim o foi para o monge-papa, o romano Gregório. Deu ao monacato a providencial tarefa missionária que nem o mesmo São Bento havia previsto como atividade específica de seus monges.

Seu espírito ascético está testamentado também em seus escritos, alguns dos quais dominaram toda a Idade Média, fazendo-a fecunda em muitos aspectos (por exemplo, sua regra pastoral para o clero, suas homilias, mais de 800 cartas). Naturalmente, a alta e profunda espiritualidade da antiga teologia eclesiástica se havia perdido. Em comparação, as obras de Gregório, em seu conteúdo como em sua forma, foram de modesta categoria (ainda que os velhos monges, por múltiplos caminhos, souberam extrair de seu exuberante estilo alegórico um vigoroso e são alimento, muito de outra maneira que nós). Indubitávelmente, sua força religiosa é enorme e se expressa em formas totalmente válidas para as gentes de então (incluso os monges).

7. Muito em consonância com o caráter de Gregório foi também sua organização ao papado, do qual tem vindo a ser ao longo da história o representante ideal. A particularidade de seu pontificado consiste em que, por uma parte, está totalmente na linha que vai de São Leão Magno a Gregório VII e, por outra, parece contradizer em pontos essenciais essa mesma poderosa corrente histórica. A este respeito é muito significativa a discussão de Gregório com João o Jejuador (595), que sendo bispo de Constantinopla se atribuiu o título de "patriarca ecumênico." O título como tal não era novo. Como expressão da dignidade do patriarca da capital do império, cujo posto era superior ao do patriarca de Alexandria e de Antioquia, havia sido consentido durante muito tempo na mesma Roma e inclusive por Gregório, em contraposição com a postura de Leão Magno. Mas tal título podia também entender-se no sentido de um episcopus universalis, o que implicava uma inaceitável limitação do primado romano. Contra isto protestou Gregório em uma carta dirigida a seu amigo o Patriarca João, por outra parte altamente respeitado por sua piedade. Nela reivindicava para si o primado da Sé de Pedro, por vez que rejeitava o título de "bispo universal" como expressão de uma injusta e pouco caritativa presunção. Contra a práxis bizantina e em conformidade com a primeira carta de São Pedro (5:1-3), e fiel a sua própria exortação ao clero ("mais servir que mandar!"), Gregório se chamava a si mesmo servus servorum Dei. Tampouco esta denominação, que adiante empregariam os bispos de Roma para designarem-se a si mesmos, era nova nem tinha um significado preciso. Já São Leão Magno havia qualificado seu serviço como servitus e o imperador Justiniano, o poderoso dominador da Igreja, acreditou poder considerar-se a si mesmo como ultimus servus minimus. Mas no caso de Gregório este qualificativo foi algo mais que uma fórmula de devoção ou uma exaltação de seu cargo por via contrária. De seu alcance nos informa uma carta que dirigiu no ano 598 ao patriarca Evlogios de Alexandria. Nela não somente rejeita para si o título de universalis papa, senão que explicitamente recusa a expressão epistolar "como vós haveis mandado," que Evlógios havia empregado em uma carta dirigida a Gregório. Porque — assim precisa o próprio Gregório — "ele não tem mandado nada, senão simplesmente tem-se preocupado em comunicar ao patriarca o que o tem parecido útil." O primado — ao qual também se atém Gregório, igual que seus predecessores — deve, portanto, exercer-se, em sua opinião, em forma de serviço, não de domínio. Gregório rege a Igreja enquanto que serve aos irmãos (cf. Lc 22:26ss).

Desta forma de entender o servus servorum Dei, típica de Gregório, tem que distinguir a outra, segundo a qual o papa serve à Igreja enquanto que a rege. É preciso ter presente esta importante distinção para compreender a íntima tensão existente entre história e revelação na evolução da idéia do primado desde Gregório I até Gregório VII; desde este primeiro papa-monge, que rejeitou para o sucessor de Pedro o título de universalis papa como orgulhosa presunção, degradante para os irmãos no ministério, até aquele outro monge sobre a sede do príncipe dos apóstolos, que, manteve sua indiscutível humildade e sua insuperável disposição ao serviço, em seu célebre Dictatus Papae (§ 48) reclamou o mesmo título como direito exclusivo do papa. Especial título de honra deste grande papa daquela época de transição é, pois, que ele mesmo, sendo romano, soubera desprender-se da romana envoltura do principatus espiritual, pondo em prática a simplicidade e genuinidade evangélica do ministério de São Pedro.

Este mesmo espírito, unido a uma sã política realista, foi o que ao parecer guiou a São Gregório quando, frente à autoridade do imperador, chegou a tomar uma postura notavelmente distinta da de seus predecessores e sucessores. Tratando-se da Fé, Gregório não sabe retroceder. Mas quando se trata de assuntos — como o ingresso dos soldados no estado monacal — que atém por igual o âmbito secular e eclesiástico ou correspondem à autoridade "político-eclesiástica" do imperador, então se contenta, se é necessário, com uma obediência tolerante. E assim indica claramente ao imperador Maurício que o edito de exclusão dos soldados da vida monástica é contrario à vontade de Deus. Com este duro protesto acredita haver cumprido com seu dever. Ao mais acata e promulga a lei imperial. O imperador, como cristão e como protetor da Igreja, deve ser pessoalmente responsável de sua determinação diante de Deus.

8. Sobre uma personalidade semelhante houve de recair, pouco menos que automaticamente, a direção política de Roma ao desaparecer o Senado.

Ainda, como com o incremento da riqueza também estava crescendo o poder externo do papa, é compreensível que na invasão dos longobardos não fosse considerado como o verdadeiro representante do Império romano de Oriente o exarca imperial de Ravena, senão a imponente personalidade do papa: o prestigio político do papado cresce. Com a nova ordenação econômica (possessões no triângulo formado por Perúgia, Ceprano e Viterbo), São Gregório pôs de fato os cimentos dos futuros Estados da Igreja (naturalmente, sem que em seus propósitos estivesse a idéia de semelhante estrutura).

A evolução que acabamos de descrever, sem dúvida, também pode entender-se (com Erich Caspar) no sentido de que o papa, que em um princípio superou a crise desde o ponto de vista econômico, social e caritativo pondo a contribuição dos bens eclesiásticos, se converteu sem intencioná-lo em chefe político. Mas não há que ocultar um suposto evidente: que o religioso e o pastoral em Gregório não foram em absoluto conseqüência do econômico e do político. Dispor de trigo e de dinheiro para os necessitados, os refugiados e os prisioneiros, tal foi para ele o objetivo de seu labor econômico. Foi o pai e com isto o protótipo de bispo do início da Idade Média.

O trabalho esgotou sua vida. E realizou seu trabalho lutando com um corpo esgotado por contínuas enfermidades. Gregório apenas podia caminhar: é o espírito o que vivifica, o espírito cheio de fé.

9. Dos sucessores de Gregório I no trono pontifício só possuímos escassas e pálidas notícias. De certa celebridade goza somente Honório I (625-638), competente discípulo do Papa Gregório e influente no campo tanto político como eclesiástico, cuja desacertada postura na disputa dos monotelitas (§ 27, 32) levou ao Sexto Concílio Ecumênico e a Leão II a dizer dele que "tratou de desonrar a pureza da Fé."

Porém neste mesmo tempo se preparam novos êxitos na evangelização dos germanos do norte e do oeste, no sudoeste surge a enorme e ameaçadora potência do Islam. Neste contexto deve ver-se a vida de São Gregório e de seus sucessores.

1 Semelhante juízo sobre os séculos V e VI não podemos acentuar em excesso, nem ainda para um país como a Gália, no qual penetrou muito logo a mensagem cristã e a organização eclesiástica se havia conservado relativamente intacta desde a época romana. Cf. a este propósito os dados relativos à densidade da cristianização, § 34.

2 Desde aquele tempo ficou abandonado e insalubre o campo romano, anteriormente feroz e florescente.

3 Pouco a pouco se submeteu a todo o rigor da regra: a chamada observância parva.

4 Apocrisário era naquele tempo o título dos legados papais em Bizâncio.

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