25. Fé e Formulação dos Dogmas.
Traduzido pelo Presbítero Pedro Anacleto
1. Jesus havia pregado uma fé exclusivamente religiosa em uma forma unicamente religiosa. Trouxe-nos uma revelação divina, isto é, nos comunicou as verdades celestiais que nosso entendimento nunca poderia encontrar por si só e que tampouco agora era capaz de compreender em seu verdadeiro sentido. Não apresentou seus ensinamentos em uma linguagem acadêmica, teórica ou abstrata, senão em uma linguagem viva, ético-religiosa, profética.
Depois dos importantes ensaios de São Paulo, o primeiro teólogo cristão, e de São João, também os apologetas, São Clemente de Alexandria e Orígenes haviam tratado de expor cientificamente a Fé. Estas primeiras tentativas continuaram incompletas, dado que a luta pela vida frente ao Estado no foro externo e contra a gnose no interno, obrigavam à Igreja a empregar em defender suas melhores forças. Só em uma Igreja livre podia dispor-se de forças suficientes para resolver a gigantesca tarefa da elaboração teológica da fé. Este trabalho teológico se efetua, como todo processo espiritual, graças ao contraste das diversas opiniões. Mas por si mesmo também tende a algo ulterior, a um termo que por cima das opiniões existente coloca a certeza da Única Verdade. Isto é o que em ordem da fé ocorre quando a Igreja define um dogma.
No que respeita aos movimentos fideístas dos primeiros tempos, como dos tempos posteriores (especialmente dos reformadores do século XVI), é importante observar que a Igreja sempre tem mantido explicitamente a doutrina de que a Fé não é só confiança, senão também consentimento. Já os apologetas do século II trataram em seus ensaios de desenvolver esta idéia a partir dos evangelhos e de São Paulo.
A definição dos dogmas ao longo dos séculos tem sido um dos grandes processos vitais da Igreja, de decisiva influência em seu desenvolvimento. Segundo a Fé cristã, sem dúvida, é fluxo espontâneo da infalível direção do Espírito Santo. Mas também a graduação da obra conforme as circunstâncias naturais. Tudo ao qual fica confirmado neste caso pela idéia antes indicada: a definição do dogma constrói sobre o trabalho da teologia dogmática e seus planteamentos. Por isso é necessário ter idéias claras da natureza deste trabalho e dos desenvolvimentos gerais de seu processo.
É a si mesmo significativo que tanto a Igreja da Antigüidade como da Idade Média não pronunciava tais definições senão com suma cautela. O dogma não se definia para desenvolver logo sua doutrina, senão para recusar uma falsa interpretação da doutrina; deste modo se fixava o verdadeiro sentido da doutrina da Igreja em cada uma de suas partes.
2. Um dogma definido no sentido indicado é um artigo de Fé formulado conceitualmente ao que a Igreja propõe como tal com carácter obrigatório para todos.
"Formulado conceitualmente": com isto se quer dizer que uma verdade religiosa, que já está enunciada em linguagem sensível e compreensível (tomada das Sagradas Escrituras), se expressa agora em uma linguagem mais filosófica, mais científica. Exemplos: o Novo Testamento nos revela o Pai celestial como Deus e a Jesus Cristo como Deus. Este fato da divindade de Cristo (já no mesmo Novo Testamento, no prólogo do Evangelho de João, § 6, e entre os apologetas) encontra uma formulação conceitual graças à expressão filosófica de Logos. E a definitiva expressão dogmática se logra em Nicéia (325), ao proclamar a Igreja que o Filho é homoousios (= da mesma essência) do Pai. Jesus havia dito (Mt 26:26): "Este é meu corpo...." Esta verdade tem sua formulação conceitual na definição da transubstanciação. Os termos "conceitual" e "científico" não devem, neste contexto, serem tomados estritamente. Tais expressões, no fundo, não significam mais que isto: que se quer dar uma visão de validade objetiva universal, acessível a todo homem de boa vontade; mas em nenhum caso se pensa em uma correspondência efetiva com a refinada linguagem técnico filosófico-teológica, ainda que a expressão utilizada pertença a essa mesma linguagem. Tudo isto que dizemos se pode ilustrar com toda a história dos dogmas.
A questão fundamental, pois, vem a ser esta: como passaram as verdades reveladas de sensível linguagem da pregação religiosa às formulações mais científicas?
3. O ponto de arranque é a tradição eclesiástica. As tentativas dos diversos teólogos ou escolas teológicas de formular cientificamente a revelação, obtiveram alguns resultados substancialmente diferentes, segundo a atitude intelectual inicial de cada um destes, dito com outras palavras, segundo o elemento revelado que despertava seu particular interesse e, conseqüentemente, se convertia em ponto de partida de suas reflexões; ou seja, segundo o ponto ou aspecto que os fazia abordar o problema. Todas as possibilidades viáveis para dar explicação a um ponto doutrinal tem estado, de fato, representadas pelas diferentes escolas ao longo dos séculos. De um lado, dentro da teologia eclesiástica, preocupada por manter íntegro o patrimônio revelado e encontrar para ele fórmulas abstratas obrigatórias, sempre tem tido divergências legítimas (os gregos partem das três pessoas, os latinos da unidade); de outro lado, nunca tem faltado hereges que por uma determinação subjetivista tem destacado bem este, bem aquele outro elemento da tradição, em mais detalhes dos restantes.
Desde os primeiros anúncios da mensagem cristã nos encontramos repetidamente com esta idéia fundamental: não há mais que uma verdade cristã, e só a Igreja com seu carisma dá testemunho dela. Por isso a Igreja tem excluído como hereges a todos os que têm exposto a doutrina cristã de forma distinta a como ela a entendia.
A mesma consciência se faz ver na formulação dos dogmas, na conseqüente condenação das doutrinas heréticas e na exclusão de seus representantes da comunidade eclesial, e naturalmente da salvação; aqui inclusive se faz patente que esta consciência é mais refletida e está inserida em um contexto mais amplo, que com especial claridade deixa entrever de que se trata. Esbarramos-nos ante o problema que mais tarde se haverá de traduzir na questão de se a Igreja é o único caminho da salvação.
4. A este estado de coisas se tem de lembrar outros dados complementares: com uma intensidade surpreendente, já desde o primeiro capítulo do Evangelho de São João, e passando por São Justino e muitos Pais da Igreja, incluindo o intransigente Santo Agostinho, toda uma série de teólogos da Antigüidade, da Idade Média, sustentam a doutrina de que o Logos e sua luz ou a força de sua graça tem sido e é participada a todos os homens desde a criação do mundo. A universal e eficiente vontade salvífica de Deus é reconhecida sem dúvida alguma, verdadeiramente. Tal proclamação não desqualifica em nenhum caso a doutrina da necessidade salvífica da Igreja; também a doutrina do logos spermatikós se apóia na fé da redenção por Jesus Cristo. E toda graça antes da Igreja e fora da Igreja chega aos homens unicamente por meio da Igreja. Esta doutrina não se assenta de uma vez, senão pouco a pouco, mas sua linha evolutiva evidencia claramente uma direção unitária, que discorre, ademais, dentro do mesmo âmbito da Igreja. A doutrina, em seu conjunto, contradiz o espírito da draconiana consigna propugnada depois pelos jansenistas: "Nem uma só gota de graça cai sobre os pagãos!" (Saint-Cyran). Leão I, em uma de suas homilias, formula basicamente a doutrina católica nestes termos: "O sacramento da redenção da humanidade não está ausente nem nos tempos mais remotos," "mas bem desde a criação do mundo está instituído um único e imutável meio de salvação." Facilmente se compreende a dificuldade de delimitar e formular com precisão tão polarizadas divergências.
Uma indeterminação similar se acusa também no ato com que a Igreja exclui a alguém de sua comunhão. Jesus, em sua pregação, havia expressado a idéia da exclusão de diversas formas ("seja para ti como um gentil...," Mt 18:17, e vice-versa: "Os tiraram das sinagogas...," Jo 16:2). Na primitiva Igreja da época dos apóstolos havia verdadeiramente exclusão da Igreja. Nas controvérsias doutrinais dos séculos II e III encontramos a pouco o mesmo fenômeno. A este respeito a maioria tinha idéias muito estritas: a exclusão de um herege o entregava à condenação (cf. o final da carta do Sínodo de Sárdica a Constantino, ou muitas declarações dos sínodos africanos concernentes ao batismo dos hereges). Por outra parte, o Concílio de Nicéia, em um de seus cânones, estabelece que uma excomunhão episcopal é controlável e, portanto, corrigível. Graças às importantes decisões tomadas pelos concílios ecumênicos, a partir de Nicéia, começa a ser a excomunhão um dos grandes meios de regular a ortodoxia. Mas a idéia do alcance de semelhante proscrição ou excomunhão tem sofrido, como já se disse, notáveis oscilações ao longo dos séculos. Na Idade Média, devido a seu emprego demasiado freqüente, perdeu pouco a pouco sua eficácia, apesar de em parte suas duríssimas formulações (cf. a primeira excomunhão de Enrique IV, § 48).
O que fazer teológico dogmático se ocupou primeiramente do mistério de fé trinitário e logo do cristológico.
A revelação ensinava, e a fé geral da Igreja confessava: I. Um Deus; Pai = Deus; Filho = Deus; Espírito Santo = Deus. II. Jesus Cristo = Deus e homem.
Com respeito a I, o indiscutido era a unidade: só há um Deus. Tomando como ponto de partida esta unidade, os monarquianos (§ 16:1) não davam importância, ou muito pouca, à divindade do Filho; em conseqüência, ou bem sustentavam que o Filho estava totalmente absorvido pelo Pai, de modo que o Filho não era mais que uma aparência do Pai (modalistas), e assim havia sido o Pai que morreu na cruz (patripasianos); ou bem negavam que Cristo era uma encarnação de Deus, estando somente tomado de força (dynamis) divina (dinamistas). Como conseqüência última desta opinião resultava que o Filho não era mais que uma criatura do Pai. Frente a tudo isto, a teologia eclesiástica se reafirmou na unidade de Deus e na trindade de pessoas divinas, encontrando para isto a fórmula de que o Filho é consubstancial ao Pai.
Com respeito a II, o ponto de arranque das controvérsias sobre este tema veio a ser a afirmação eclesiástica da divindade de Cristo que nos tem redimido. Cristo é único (o redentor), mas Deus e homem pela vez. Como se tem de entender a união das duas naturezas? Tem sido a humanidade absorvida pela divindade feita carne ou coexistem ambas as naturezas? Nestório (§ 27), acentuando a dualidade, pôs em perigo a uni personalidade de Jesus: a divindade habita no homem Jesus como em um templo. E, vice-versa, os monofisitas, partindo da unidade, chegaram a negar a integridade das duas naturezas; a humanidade é absorvida pela divindade. A Igreja, pelo contrário, afirma: duas naturezas em uma só pessoa divina, essencialmente unidas mas não misturadas.
6. Talvez em nenhum outro lugar melhor que na formulação dos dogmas se podem descobrir a sábia mesura da Igreja, seu fiel atendimento ao depósito íntegro da tradição ou à Sagrada Escritura e à Igreja mesma como autora da síntese. A heresia, dominada por seus próprios impulsos unilaterais filosóficos ou espiritualistas ou de fanatismo religioso, chegou a constringir a pregação da Fé por um lado ou por seu contrário. A Igreja foi rechaçando a restrição de um lado como do outro e estabelecendo como conteúdo da Fé a íntegra totalidade das verdades contidas na pregação de Jesus e dos apóstolos.
7. Já temos visto que nesta época a tarefa da formulação dos dogmas foi realizada exclusivamente pela teologia oriental, de acordo com sua natureza (filosófica). Pelo contrário, no Ocidente, de acordo com o caráter ocidental, o trabalho se centrou menos na penetração intelectiva. Os ocidentais se dedicaram mais aos assuntos práticos e morais. Porém os gregos se empenharam em averiguar o fundamento da essência divina e divino-humana, os teólogos ocidentais se ocuparam preferencialmente com o processo da salvação: Como se salva o homem? Como se conjugam a graça divina e a vontade humana?
De capital importância é o fato de haver-se adotado em seguida, junto com o grego, o latim como "língua de uso" (Worringer) 15. Nas Sagradas Escrituras, o conteúdo da Fé estava em sua maior parte formulado em grego. Inclusive o trabalho da formulação dos dogmas no Ocidente havia discorrido (sobre tudo no caso de Agostinho) por causa da cultura grega, da qual também participavam os romanos. Sem embargo, a organização desta fé foi obra exclusiva do gênio latino e se realizou em língua latina. E outro tanto a configuração da liturgia no Ocidente. O latim, a partir da segunda metade do século IV, se converteu em uma espécie de baluarte da ortodoxia. Isto é, de uma importância decisiva. Situamos-nos ante a única energia espiritual perceptível que no território romano-ocidental realmente, ainda que inconscientemente, se opôs à orientalização da Antigüidade tardia, até então inquestionavelmente aceita, convertendo-se assim em condição básica para a formação de um Ocidente autônomo (H. E. Stier).
Não obstante, também o gênio da língua latina comportou e estabeleceu discrepâncias, nem sempre fáceis de evitar, com a idéia grega da fé. Em particular resultou difícil guarda exata da correspondência em grego e em latim dos conceitos fundamentais.
15 Desde o século IV, a cúria adotou, junto à forma das decretais, também a dos mandatos romanos.