sábado, 3 de dezembro de 2011

Idade Média. O Período Romano-Germânico. 34. Características Gerais.

Idade Média.



O Período Romano-Germânico.


34. Características Gerais.



Traduzido pelo Presbítero Pedro Anacleto



Preliminares. A ação da Igreja sempre se tem visto, em não poucas coisas, fortemente condicionada pelo tempo histórico. A intensidade dessa vinculação tem sido diferente em cada época. Mas na Idade Média foi substancialmente mais intensa que antes e depois dela. Porque então e só então, dado o curso da história precedente, teve a Igreja a possibilidade de configurar a totalidade da vida (incluída a vida pública) segundo seu próprio espírito. A realização desta tarefa a levou forçosamente a um íntimo contato com o "mundo" e suas diversas manifestações (cultura e Estado). Deste modo, na Idade Média também houve manifestações essenciais da vida eclesiástica mais fortemente condicionadas pelo tempo histórico que antes e depois, em especial as formas de direção eclesiástica, como se nos apresentam, por exemplo, na figura do príncipe-bispo medieval e nas formas especificamente medievais do papado.

Este condicionamento temporal originou situações peculiares e tensões, cuja justa valoração não resulta nada fácil. Por isso é preciso estudar os antecedentes com especial cuidado.

Antes de tudo temos que ter muito em conta a mudança de significado que tem sofrido nossa linguagem. O sentido de certas expressões não é o mesmo no século IX, no século X e no século XX. Quando falamos da Igreja como formadora do Ocidente, temos que entendê-lo como comprovação de um fato histórico, não como um ideal. A pretensão direta de um governo clerical não tem base no evangelho. Ou quando falamos de "Igreja e Estado," não temos que pensar em um Estado secularizado que por sua essência tenha de estar enfrentando a Igreja. Tal como se deduz do contexto, se pensa nos representantes da Igreja de então e do Estado de então, ao qual tinha em parte um fundamento sagrado, ou seja, temos que pensar no que geralmente se denomina sacerdotium e imperium.

Quando se fala do auge da hierarquia como reitora da sociedade do Ocidente, nós estamos novamente ante uma descrição histórica; de nenhum modo se trata de uma aprovação dos meios eventualmente empregados. Isto se desprende da forma de exposição, que demonstra que este auge em alguns aspectos só foi uma vitória pírrica.

A "cultura clerical do século XIII" não implica somente umas manifestações piedosas corretas; a ela também pertencem, por exemplo, os tão desenfadados Carmina Burana e outras formas mais ou menos bastardas.

As epígrafes só podem assinalar as grandes linhas de um tema; em cada exposição concreta devem ser uma e outra vez completados com múltiplas exceções, correntes contrárias, subdivisões. Assim, por exemplo, devemos descrever minuciosamente o predomínio do clerical na Igreja da Idade Média, mas nem por isso podemos silenciar que o sacerdócio em geral ficou muito longe de conseguir a desejada interpretação.



I. O Cenário.

1. Por Idade Média entendemos, segundo o modo comum de falar, o tempo que transcorre desde os séculos V / VI até o século XV. Já se tem dito que estes dados só pretendem ter um valor aproximado e que no Oriente e no Ocidente tem distinta validade.

A história eclesiástica da Idade Média, comparada com a história eclesiástica da Antigüidade, tem uma dimensão espacial distinta. O cenário da história da Igreja é, por uma parte, mais reduzido e, por outra, mais largura que nos séculos cristãos precedentes.

Em primeiro lugar, com o retrocesso dos limites do império também se deu uma redução da zona alcançada pela mensagem cristã, por exemplo, no norte da Gália e nas Ilhas Britânicas. Esta perca se viu compensada logo com uma reconquista. A verdadeira ampliação do cenário da história da Igreja se logrou com a cristianização dos povos germânicos da Europa central e Escandinava e dos povos eslavos dos Bálcãs, da Rússia e Polônia e da Hungria magiar.

Por outra parte, o cenário esteve limitado à Europa. O autêntico cenário donde se desenvolveu a história eclesiástica medieval foi o Ocidente. Esta circunscrição foi provocada, primeiro, pelo Islam (desde o século VII) e, segundo, pela separação da Igreja oriental (Bizâncio, Bálcãs, Rússia) desde o século XI (Neste Grande cisma teria muito que ver os francos e a dinastia carolíngia, que inculcou no ocidente a heresia do"Filioque").

Mohamed (574-632; primeira aparição, 611) desenvolveu sua doutrina fortemente influenciado pelo pensamento judeu e o pensamento cristão escatológico (§ 8:3). Com a idéia islâmica da conquista do mundo se fez realidade, desta vez com a contribuição do impulso religioso, a migração dos povos árabes desde o noroeste e o nordeste, arquivada já muitos séculos antes de Mohamed. Desde o ponto de vista da história da Igreja, veio a ser um furacão aniquilador que fez que a Igreja perdesse as províncias cristãs mais antigas e (junto com Roma) mais independente do ponto de vista eclesiástico: Síria, Palestina, Egito e o norte da África. Além, de um século depois da primeira aparição de Mohamed (711) caiu vítima do Islam o reino cristão visigodo da Espanha. No ano 732 as forças do Ocidente foram capazes de se manterem separadas da Gália aquela onda de infiéis, logrando assim salvar o nascente Ocidente cristão, ou seja, nossa "Europa" (vitória de Carlos Martel em Tours e Poitiers).

É significativo que os povos agrupados em aliança defensiva ao norte dos Pirineus receberam o nome coletivo de "europenses." O único nome põe de manifesto a mudança fundamental da situação: do Oriente já não vem a luz da Fé, senão a ameaça dos "infiéis" 1.

Sobre o ponto segundo devemos advertir:

a) As Igrejas do Oriente tiveram desde muito cedo uma grande independência, de acordo com a maior independência geral das Igrejas nos tempo primitivo do cristianismo. Especialmente por sua fundação apostólica, gozavam de certos direitos particulares. Apesar de manterem a comunidade de Fé entre Oriente e Ocidente, as culturas de ambas, metade do império foram vivendo distanciadas. Este crescimento por separado teve um fundamento político na rivalidade entre a nova e a velha Roma. Em concreto, a rivalidade do jovem patriarca de Constantinopla com o primado do Ocidente fez que tal situação penetrasse de imediato no âmbito eclesiástico. Mas aqui, por um e outro lado, a questão foi levada por muito distintas direções graças a um tipo de pensamento eclesiástico, especial em cada caso, que nos conduz ao centro do problema da história eclesiástica medieval: toda a temática da Idade Media esta dominada pela questão das relações entre o sacerdócio e o poder político. O fato de que a solução seja muito diferente no Oriente e no Ocidente determina também — prescindindo dos influxos externos — a diferença da história eclesiástica medieval oriental e ocidental: mistura confusa de ambas as esferas no Oriente, relações muito tensas entre ambas no Ocidente.

b) As Igrejas do Oriente conservaram, certamente, uma independência eclesiástica, mas esta se viu limitada em sumo grau pelo imperador; em efeito, no imperador, o "rei-sacerdote" segundo a ordem de Melquisedec, reconheciam ao único representante de Deus, que exerce autoridade também sobre a Igreja, ainda que seus "assuntos internos" fiquem reservados à hierarquia.

Esta mistura (symphonia) inicial, progressivamente consumada, de ambas as esferas teve também sua correspondência no Ocidente. Mas a relação esteve aqui desde o princípio claríssimamente caracterizado pela distinção de duas ordens radicalmente independentes. Desde logo, teoricamente, ambos deviam estar "subordinados" a uma unidade superior. Mas por ambas as partes, tanto pela eclesiástica como pela temporal, não se realizou por completo a distinção nem se entendeu suficientemente a unidade como verdadeira coordenação. O que ao longo dos séculos encontramos todo tipo de intromissões recíprocas e a tentativa de submeter ao rival.

Nestas tensões, obscuras por muitos conceitos, radica a luta existente entre sacerdotium e imperium, o Papado e o Império, que domina a Idade Média.

c) Ao acentuar-se a autoridade própria da hierarquia, o caráter ministerial cobrou maior força no Ocidente. A autoridade ministerial do papa reclamou para si em exclusividade o poder religioso, com determinados direitos alheios que anteriormente estavam reservados ao imperador (principatus e auctoritas; cf. já os Papas Leão I, Félix III, Gelásio I). Ao imperador unicamente devia corresponder-lhe a já limitada "potestade real" (regia potestas) 2.

A diferença desta atitude radical agravou a rivalidade dos patriarcas orientais com o bispo de Roma. Conscientes da fundação apostólica de suas respectivas Igrejas consideraram uma inovação as pretensões dos papas. Aparte a pouca antigüidade da sede episcopal de Constantinopla, não tiveram em conta que sua própria idéia de unidade, baseada inteiramente no imperador e o império, não era em absoluto de origem apostólico.

Junto com a diversidade eclesiástica, a mencionada diversidade cultural levou progressivamente à separação espiritual. Seu resultado foi o cisma da Igreja Romano-Católica do ano 1054.

A Igreja oriental, fazia já muito tempo que não exercia nenhuma influência essencial na configuração da Idade Média européia 3. Antes sua influência havia sido não só importante, senão decisiva e fundamental nas definições dogmáticas dos grandes concílios ecumênicos. Mas desde princípios do século VIII ficou sobremaneira obscurecida, a raiz da disputa dos iconoclastas, questão provocada por sua vez em grande parte pelo contacto com o Islam. Suas repercussões, que alvoroçaram o Oriente, implicando inclusive a grandes massas populares (venceram os defensores da veneração das imagens, os monges; o clero secular fracassou), constituem um dos já mencionados graves disputas nos quais o Oriente, formulando graves acusações contra o papado e os "latinos" (o imperador Leão III contra Gregório III! cf. § 38), foi separando-se cada vez mais do Ocidente.

Nos séculos que chamamos medievais a vida da Igreja do Oriente foi muito pouco criativa; mas, nem por isso, não se limitou em absoluto a conservar e transmitir as formas da antiga vida cristã.

d) Difícil é valorizar em toda sua amplitude a influência indireta do Oriente sobre o Ocidente. No desenvolver do primado de jurisdição do papa, por exemplo, tão intimamente relacionado com a evolução das pretensões imperiais dos papas (cf. Gregório VII e Inocêncio III), desempenhou um importante papel no processo de fusão das idéias romano-ocidentais.

Como fecundação direta do Ocidente por obra do Oriente temos que recordar o monacato. Em seu conjunto não é somente um presente do Oriente à Igreja [cf. § 26 (Santo Atanásio)]; o monacato ocidental, inclusive em suas reformas, sempre se tem remetido a suas origens greco-orientais: São João Cassiano e, em geral, o monacato galo anterior a São Bento; também o monacato irlandês recebeu uma forte influência oriental pelo influxo a seu vez do monacato galo. Na teologia monástica é notória a sobrevivência dos Pais gregos. Como figura individual mais destacada temos que mencionar a Escoto Eriúgena; ele foi o tradutor do Pseudo-Dionísio. E precisamente neste caso se demonstra a profunda influência da teologia grega na ocidental; São Dionísio Areopagita chegou a ser para São Tomás uma autoridade pouco menos que absoluta (cf. § 59). Do influxo do Oriente voltaremos a falar outra vez quando nos ocupamos das cruzadas e da recepção de Aristóteles, realizada através da Espanha e Sicília, como também da irrupção de certas idéias religiosas "sincretistas" orientais. Um exemplo singular e de suma importância nos oferece o movimento cátaro (§ 56).

Dentro deste marco temos que incluir, finalmente, as tendências de reunificação de ambas as Igrejas, expressadas com freqüência, mas sempre com insuficiente força e escasso conhecimento de causa.

A dupla redução da zona de influência da Igreja Romana no Oriente (pelo Islam e pelo cisma eclesiástico) é um dos pressupostos para a formação da eclesialidade unitária ocidental sob o papado.

2. Nossa exposição se ocupa primordialmente da Igreja Ocidental. Daí que, pelo geral, só raras vezes dirigimos nossa visão ao Oriente, donde cresceu o cristianismo naqueles primeiros séculos heróicos. Porém, não devemos passar por alto o seguinte: a) O Oriente não viveu, nem muito menos, somente de seu ergotismo; ou melhor, mantendo-se próximo ao cristianismo primitivo, conservou uma significativa e peculiar piedade litúrgico-sacramental, que capacitou a seus fiéis para o martírio, inclusive em nossos dias (os armênios, entre os anos 1895-1916; a Igreja Russa na perseguição do Estado soviético, que por certo hoje se tem convertido em uma Igreja do Silêncio, de tal modo que apenas podemos obter uma visão adequada de sua vida). Por ter conservado atitudes espirituais decididamente não ocidentais (inclusive a modalidade tão pouco racional da teologia greco-russa) 4 pode fazer que o cristianismo oriental se converta, em certo modo, em mestre da piedade ocidental; pode ser de enorme importância para as futuras tarefas da Igreja, bem fomentando um aprofundamento nos valores cristãos do Ocidente, bem propiciando uma fecunda evangelização dos povos não europeus, especialmente do distante Oriente. Inclusive na luta pela reunificação de todos os cristãos em uma só Igreja, à Igreja oriental o compete uma importante função. b) Constantinopla, capital de cada vez mais reduzido Império do Oriente, constituiu durante toda a Idade Média, graças à solidez de seus muros, a barreira protetora que impediu que o Ocidente cristão fosse tragado pela onda dos "infiéis." Neste sentido foi Bizâncio quem sem dúvida deu ao Ocidente a possibilidade de estruturar sua vida, isto é, de ter uma Idade Média.



II. Os Fundamentos.

1. Já conhecemos os feitos fundamentais e as linhas de força da Idade Média ocidental. Tais foram: 1) a invasão dos povos germânicos, que não só destruíram o Império Romano do Ocidente, senão que também fizeram surgir os novos Estados germânicos em seu próprio solo e no resto da Europa, e com isto fizeram que a Igreja e os povos adotassem umas condições de vida essencialmente diferentes das da Antigüidade; 2) a Igreja ocidental, isto é, a Igreja latina, tal como se havia formado até o século V e seguiu formando-se por sua própria evolução interna e como herdeira da cultura antiga; 3) os novos povos germânicos, ainda jovens e capazes de evolução; 4) seu ingresso na Igreja. À configuração destes elementos fundamentais se somaram logo, no século X, os povos eslavos ocidentais.

Duas potencias, pois, estão frente a frente: a Igreja e os povos germânicos. Em sua união descansa toda a Idade Média.

2. Também temos notícia da penetração, em parte pacífica (por migração oculta), em parte violenta, dos germanos no Império romano, e outro tanto da lenta, parcial desintegração da civilização greco-romana. Os germanos foram, em primeiro lugar, herdeiros diretos e discípulos daquela civilização, todavia pujante (ainda que já em decadência). Em sua qualidade de funcionários romanos já a haviam assimilado de diversos modos antes que o poder político do Império Romano caísse. Ainda no século VI havia na Gália meridional escolas de retórica à antiga forma, que difundiam a cultura ocidental. E na católica Espanha floresceu uma vida cultural relativamente rica até a devastadora invasão dos muçulmanos.

Foi Casiodoro (§ 32), sobre tudo, quem com grande estilo tentou transplantar o patrimônio cultural antigo aos tempos novos e utilizar as ciências profanas para o estudo das Sagradas Escrituras. Provavelmente seja ainda mais estimável a atividade mediadora do monacato irlandês-escocês e anglo-saxônico (§ 36). A cultura antiga, em efeito, se propagou poderosamente no isolamento das Ilhas Britânicas. Porém no século VII a nível cultural do continente europeu ocidental quase chegou a zero, na Irlanda, aparte do estudo da Escritura e dos Padres da Igreja, floresceu a gramática, a retórica, a geometria, etc. Ali, inclusive, ainda se ensinava e aprendia o grego.

Porém, também no continente sobreviviam de alguma maneira relevantes concepções antigas (por exemplo, a idéia do império e do imperador). No período da depressão cultural não deixou de haver importantes centros de irradiação da cultura antiga: sobre tudo Roma, a sul da Itália e o exarcado de Ravena, que até os anos 754-756 e 800, respectivamente, pertenceram politicamente ao Império oriental 5. A liturgia latina nunca deixou de existir.

3. Não temos que sobrevalorizar o patrimônio cultural da Igreja nos primeiros séculos da Idade Média. A nível geral havia descido drasticamente a partir do século V, sobre tudo nos territórios mais setentrionais do Império Romano. As forças espirituais que ainda atuavam na Igreja foram apenas suficientes para conservar aos documentos salvos da cultura antiga e os de seu próprio acervo teológico e transmitir importantes experiências da administração e da agricultura. Isto, por outra parte, teve uma enorme importância. Numa única obra de Santo Agostinho, por exemplo, possuía a Igreja, se não toda a cultura antiga, ao menos um reflexo tão poderoso dela que a fez converter-se em fundamento de todo o milênio seguinte. A particularidade, o vigor e os limites desta cultura teológico da Igreja a princípios da Idade Média pode reconhecer na regra de São Bento (§ 32) e nas obras literárias de São Gregório I (§ 35).

4. Não se pode negar que os germanos, apesar de algumas obras notáveis estavam, todavia subdesenvolvidos. Mas este fato, comparado com a cultura clássica dos antigos constitui uma deficiência, deve estudar-se com maior detalhe para evitar uma falsa interpretação.

a) Em primeiro lugar é importante ter em conta a variadíssima significação que desde o ponto de vista objetivo, geográfico e temporal tem essas expressões gerais de "migração dos povos," "germanos," "conversão dos germanos." Até Carlos Magno, os germanos não constituíram em absoluto uma unidade como povo; nem sequer as famílias dos francos, saxões, etc., estavam intimamente unidas; formavam mais bem um grupo racial. "Lutavam entre si com a mesma hostilidade que com os estranhos, e se aliavam com estes o mesmo que com seus companheiros de tribo" (Ranke). O comportamento das distintas tribos germânicas com o cristianismo não é unitário (cf. conversão dos saxões, § 40).

As migrações como tais, ademais, significaram algo mais decisivo para as tribos germânicas orientais que para as do interior: os godos, vândalos e longobardos se separaram muito de seus lugares de origem, chegando a regiões totalmente diferentes desde o ponto de vista geográfico e cultural, tanto que sua própria força de conservação se viu gravemente ameaçada. Pelo contrário, as tribos do interior se viram muito menos afetadas pelas migrações; os antigos saxões e os frisões não sofreram nenhuma mudança essencial. Esta diferença foi de suma importância para a vida política, civil e religioso-eclesiástica das tribos.

b) Os implicados nestes acontecimentos histórico-eclesiásticos desde começos da Idade Média não cremos que são os germanos da era anterior a Cristo, em que a antiga fé pagã e sua correspondente conduta moral ainda se conservavam com relativa pureza, sem haver sofrido a posterior decomposição. Tampouco devemos imaginar aos germanos ocidentais dos séculos VI-VIII, que residiam no continente e a quem tinha que evangelizar, segundo a imagem simplista que de eles nos dão as sagas islandesas, aparecidas em sua maior parte depois do primeiro milênio cristão, fortemente influenciado pelo cristianismo. Mas bem tem que haver com uma grande variedade de tribos germânicas, fundamentalmente diferentes por seu caráter, experiências, situação interna e externa, tal como eram ao término e como resultado das migrações. Seu modo de pensar o citamos fielmente reproduzido nos escritores eclesiásticos do século VI e seguintes e nos informes sobre o trabalho de evangelização dos missionários germânicos entre seus irmãos, todavia pagãos, nas primitivas vidas e legendas de santos e nos decretos dos sínodos da época. A valoração objetiva, científica destas fontes é, sem dúvida, muito difícil, porque para os homens daqueles tempos eram estranhas as categorias básicas de nosso método crítico de pensar, observar, valorar e informar.

c) O conceito de "cultura" daqueles tempos, inclusas as tribos germânicas que tiveram a ocasião de intervir nas decisões históricas, estava pré-estabelecido. No Ocidente, "cultura" equivalia a "Roma." Todos os povos que não formavam parte da civilização Greco-romana eram bárbaros; a cultura Greco-romana em seu conjunto era considerada indiscutivelmente como a mais elevada. Os germanos em sua maioria aceitaram como evidente esta valorização; também evidentemente se esforçaram por assimilar a cultura Greco-romana (que incluía a si mesmo o poderio romano), ao encontrar-se com ela no curso de suas migrações. A palavra "bárbaros" deve tomar-se no sentido em que a toma Bonifácio, todavia no ano 742, sendo ele mesmo saxão, ao falar dos "alemães, bávaros e francos, homens rudes e simples."

d) A fé cristã é por essência algo mais que cultura. Então se apresentou aos germanos indissoluvelmente unidos à herança cultural helenístico-romana. Foi uma grande benção que eles, junto com a fé, aceitassem e afirmassem por princípio esta cultura superior. Se os brindou a tarefa de conservar e dar nova forma ao Império romano (em cujo poder se falava a civilização helenística). Entre os que inculcaram aos germanos esta fecunda idéia histórica houve também papas, como Gregório II, Gregório III, Estevão II (cf. Bonifácio). Naturalmente, desde o ponto de vista cristão podia parecer quase impossível transmitir aos germanos a herança romano-cristã em pacífica continuidade.

Na pregação cristã os germanos ouviram falar de Deus criador, do Logos, da graça, da predestinação, dos sacramentos (que não são nenhuma magia), do inferno (que não é só o reino dos mortos). Aqui surge o problema central: tinham os germanos capacidade intelectual para elaborar serena e autonomamente tais idéias, não só ao término das migrações, senão nos séculos seguinte? A resposta é óbvia: para uma elaboração verdadeiramente criativa não estavam preparados, sensivelmente porque faltava a eles a cultura espiritual necessária para isto.

Logrou surpreendente para a Igreja é o haver transmitido a estas tribos em toda sua integridade e sem falsificações essenciais (ainda que não sem muitos e prolongados esforços) uma doutrina tão altamente espiritual.

5. Para entender os primeiros tempos germano-cristãos é imprescindível começar esclarecendo se estas tribos tinham sequer a possibilidade de uma verdadeira conversão. Suas grandes e inegáveis dificuldades se põe principalmente de manifesto quando se as compara com as da missão cristã na Antigüidade. Comparem, por exemplo, os pressupostos da aceitação do cristianismo entre os germanos e entre os judeus da Palestina, entre os quais, depois de uma preparação de séculos e sob uma direção providencial, apareceu Jesus como o Messias prometido. Apesar desta preparação básica e dos três anos de ação educativa do mesmo Jesus, quão escasso foi o êxito inicial e quantas as dificuldades que se seguiram! Igualmente, no maior êxito podia ter uma reorganização de grande estilo — uma Europa cristã — no Império Romano, nem sequer sob os imperadores convertidos ao cristianismo, posto que ali a cultura pagã estava farta esclerosada e sempre se fez sentir como um corpo estranho. Ideal foi, em troca, a possibilidade de fecundação, quando a semente do cristianismo caiu entre as tribos germânicas, que ofereciam um terreno de imenso recurso ainda que, todavia virgem e inculto.

a) A afluência de elementos germânicos na mensagem cristã foi desde o princípio considerável; mais tarde, até resultou co-determinante para a formação da liturgia e as concepções teológicas. Mas donde mais se fez sentir a influência germânica foi no campo da piedade popular. O cristianismo, nascido no Oriente, formulado em língua grega, vertido e reformado na ágil forma romana, era obviamente diferente, enquanto a conteúdo e forma de apresentação, de tudo aquilo que globalmente podemos chamar "germânico." Em conseqüência, a cristianização dos germanos, na primeira fase de conversão das massas, resultou em um longo e complicado processo de crescimento que em muitos lugares originou sérias contendas entre os valores de ambas as partes, convertendo-se assim em um processo de fermentação. O fluxo do germânico no cristão foi claramente diferente da confluência da Antigüidade com o cristianismo: em efeito, principalmente se realizou pela via do sentimento, da fantasia, do afeto; por isso suas primeiras manifestações válidas 6 se deram no campo da arte (o poema Heliand: arquiteturas e esculturas de estilo românico primitivo). Pelo contrário, durante muitos séculos não houve nenhum impulso teológico.

A rápida aparição de alguns problemas teológicos (por exemplo, em Heliand, ou a turbulenta contenda de Godescalco [+ 868] sobre o problema da predestinação) naturalmente não disse nada contra esta tese. Houve alguns teólogos, inclusive alguns com proposição herética; mas em geral não houve nem teologia original nem heresias até as falsas doutrinas do abade Radberto de Corbeya (+ 860) sobre a Santa Comunhão não tiveram nem difusão nem conseqüências profundas.

Em geral, pois, não teve entre os germanos especial interesse pela teologia, nem ao principio nem nos tempos do florescimento teológico posterior. A teologia no Ocidente não foi nem se mostrou tão popular como o havia sido no Oriente entre as grandes massas do povo, que tomavam postura respeito ao nestorianismo, monofisismo e a disputa dos iconoclastas. A conseqüência foi uma profunda e perigosa discrepância entre a piedade popular e a teologia erudita. Mais tarde se manifestou o pensamento germânico no campo das instituições eclesiásticas.

b) Apesar disto surgiram perigos, e não pequenos, para a pureza da mensagem cristã.

Algumas das já mencionadas idéias fundamentais da pregação cristã foram reproduzidas em imagens ou conceitos inadequados. O exemplo clássico no campo da doutrina da fé é a concepção de Cristo como um caudilho, um herói vitorioso e vencedor do demônio ao que se jura e mantém fidelidade, um rei nacional separado de sua baixeza e miséria humana, cujos apóstolos aparecem como valorosos paladinos de um soberano ou feudatário e ante quem o primeiro que se desvanece é a figura sofredora do servo de Deus.

Dentro de um acúmulo de formas mágico-supersticiosas cobrou vigência uma série de concepções mais naturais, por não dizer naturalistas, resíduos da antiga fé germânica, que podemos descobrir no culto aos santos, demônios, relíquias, mortos e — o que foi mais funesto — na bruxaria, tanto a princípios da Idade Média como nos séculos posteriores.

A moralidade cristã se viu intensamente implicada nesta discussão: por uma parte, se encontrou fusionada com velhas concepções tradicionais, mais grosseiras; e, por outro lado especialmente entre os francos, perdeu em parte sua primitiva pureza em troca de valores inferiores tais como o uso indiscriminado da força, que não reconhece o caráter decisivo do direito, as crueldades dos príncipes e suas mulheres, os assassinatos de príncipes em quantidade incrível, o espírito de vingança, a luxúria em todas suas tristes modalidades 7, o abuso imoral dos escravos e especialmente o adultério e até a poligamia, ao que, como circunstância externa, coadjuvou a lei de sucessão germânica com sua quase politização do matrimônio.

c) Mas, contudo, vem à vista a enorme diferença entre esta "germanização" e a judaização ou helenização do cristianismo tentada nos primeiros séculos: agora não existe perigo essencial algum para a doutrina cristã no sentido de uma tentativa consciente de interpretação teológica, senão ao sumo, e em pequena medida, uma decomposição por insuficiência cultural inconsciente. A abundância de perturbações não representava diretamente um perigo vital, porém a totalidade da doutrina católica não se vira recortada unilateralmente; a Igreja podia suportá-las. O passo decisivo estava assegurado: a semente da doutrina divina podia criar raízes. É certo que os fatores mencionados implicavam graves perigos; e estes se agravaram quando na evolução posterior não foram reconhecidos como princípios equivocados nem foram, portanto, eliminados.

III. Tarefas e Possibilidades.

1. Ao começo da Idade Média, a Igreja e as tribos germânicas, com todas as suas possibilidades e patrimônio, estavam destinadas a viverem em mútua relação; pois a Igreja fundada por Cristo com toda sua vocação missionária e aqueles povos jovens com sua indigência cultural e religiosa chegaram a se encontrarem em um mesmo âmbito cultural. Se bem que os germanos ao princípio só foram os educandos dos bispos e monges, rapidamente ocuparam seu lugar e em seguida puderam levar a seus próprios congêneres à Fé. Neste processo de fusão se baseia a Idade Média.

As características que nesta época determinam o âmbito espiritual do Ocidente são múltiplas, umas favoráveis, outras desfavoráveis para a obra da Igreja.

Tais características aparecem com toda claridade sem as compararmos com as da época antiga, e oferecem diferenças substanciais. Então a Igreja era uma semente, que caiu sobre três civilizações ou culturas superiores, fundamentalmente distintas e plenamente desenvolvidas. Em troca, a princípios da Idade Média a semente já tinha crescido e se tinha convertido em um grande organismo (ainda que desde logo não de todo desenvolvida e, além, novamente debilitada); tal organismo não tem frente a ela uma cultura superior com a qual de alguma maneira possa medir suas forças, pranteando questões de índole espiritual, e muito menos várias culturas similares. Em tal ambiente se dava uma singular disposição e uma possibilidade de formação, mas faltavam os supostos específicos para a criação autônoma de uma cultura superior. Estavam os germanos, pobres de cultura, mas capacitados para a instrução, que inundam toda a zona do Império Romano ocidental, houve quem se orientou à ação missionária e educadora da Igreja. Com isto se projetou diversos problemas, problemas que se mostram claramente inclusos ao norte de Limes e, ainda que em formas menos agudas, até entre os grupos étnicos românico-celtas e eslavos.

2. Em geral, predominaram as vantagens, a Igreja era uma potência tão superior na ordem religiosa e cultural que necessariamente teve de impor-se. Pode por em prática seu programa essencial, isto é, levar a Europa à Fé de Jesus Cristo, o divino redentor feito homem. Mas não tem que duvidar que as idéias germânicas sempre ofuscaram, de forma permanente ou transitória, a pregação bíblica cristã. Certo que as desvantagens já mencionadas, uma vez ignoradas o primeiro perigo, não teriam conseqüências verdadeiramente perigosas até mais tarde, quando estes jovens povos se converteram em nações cultas, com uma fé e um pensamento particular e independente: nas fins da Idade Média e nos tempos modernos. Mas isto acarreta sérias interrogações: os elementos perigosos do carácter germânico, isto é, suas deformações na fase de imaturidade, não foram talvez simplesmente endereçados ou retocados, mas não eliminados sistematicamente desde a raiz? (Partindo daqui, uma análise mais profunda da piedade medieval explica por que tantas vezes andam nela indissoluvelmente unidas a força e a debilidade).

De outro modo muitas foram as coisas no âmbito da vida exterior e no das instituições alheias a ela, donde o poder material temporal, o poder político e o potencial bélico era o que decidia. Aqui, de início, a Igreja medieval (em especial o papado) estava em desvantagem; na forma das Igrejas territoriais, por sua própria estrutura eclesial, na teocracia imperial ou na idéia de império, o fator eclesiástico dependeu durante muito tempo no essencial da benevolência do soberano temporal. Isto, sem dúvida, não modifica em nada o fato de que a Igreja tivesse necessidade precisamente destas "desvantagens" (de forma mais clara na missão) e de que durante muito tempo, talvez excessivo, inclusive as aceitasse e utilizasse (especialmente o direito eclesiástico próprio). Mas a força espiritual da Igreja foi tão predominante, que na mesma alta Idade Média chegou a exercer a direção também neste campo (com o qual, naturalmente, surgiram outros perigos, ou seja, que a Igreja em sua própria vitoria sucumbiu aos mesmos inconvenientes); no fim da Idade Média, como é natural, teve que renunciar a esta direção.

3. As vantagens:

a) Quando estes povos jovens, espiritualmente imaturos, passaram ao cristianismo, reconheceram sem dúvida a superioridade espiritual da nova religião e da Igreja. Como já se tem dito, aceitaram o cristianismo com toda objetividade e fidelidade, quase poderíamos dizer passivamente, tal como a pregação da Igreja se o apresentava; ao princípio nem sequer tentaram por si mesmos penetrar intelectualmente as doutrinas da fé. As posturas espirituais básicas, características de toda a Idade Média, tem aqui sua origem: o espírito da fé fiel à Igreja (tradicionalismo e objetivismo), a uniformidade de toda a vida religiosa espiritual (universalismo 8) e a superioridade cultural do clero, de base sacramental (clericalismo medieval 9)

Convém recordar aqui que frases programáticas ou lemas como os antes mencionados são fórmulas abreviadas, e por isso não podem expressar todas as diferenciações que seriam necessárias. A exceção do curso histórico nos oferecerá abundantes ocasiões para completá-las. O universalismo espiritual e religioso, por exemplo, obriga também sem dúvida a uma união política sob uma só autoridade em um só império. Dentro de una mútua liberdade e uma equilibrada coordenação de ambas autoridades supremas, o sacerdócio e o império, isto poderia ser incluso o ideal. Porém, o curso real da história demonstra que o universalismo espiritual se compagina perfeitamente com um certo particularismo no campo político. E isto vale tanto para o Império de Carlos Magno como para as formas políticas da alta Idade Média.

b) Já temos dito que na religiosidade germânica não se davam os supostos imediatos, espirituais e teológicos para a compreensão da mensagem cristã. Mas é inegável que alguns povos germânicos possuíam uma profunda receptividade para o sublime e ao mesmo tempo atrativa majestade do divino; pelo menos nos tempos de Tácito, os germanos, todavia a conservavam apesar do politeísmo. Em seu sentimento panteizante aflorava certo pressentimento de um Único Deus, que encontra sua melhor expressão na fórmula vigente entre os sermões, e que também nos refere Tácito, de Um Deus que tudo governa 10. Com isto estava ligada a idéia da submissão à vontade de Deus, fundamental para toda religião autêntica, coisa que também reconheciam os sermões, que não penetravam no bosque sagrado mais que encadeados, ou bem chegavam a oferecer sacrifícios aberrantes, até o ponto de sacrificarem homens e meninos da própria tribo. Naturalmente, nem todas as tribos eram tão profundamente religiosas como os sermões; sabemos também que a religião dos germanos só durou até o tempo das migrações, que precisamente nela se dissolveu. Porém, o desenvolvimento da conversão dos germanos nos autoriza a crer que tais atitudes religiosas fundamentais não haviam desaparecido ao todo.

Por outra parte, não se trata de definir certas idéias germânicas como vilumbres e modelos de algumas idéias cristãs. Os presentes "paralelos" 11 não resistem a uma investigação desapaixonada. Vivem só graças a um método perigosíssimo que, aplicado ao inverso, conduz necessariamente a uma desvalorização sincretista do cristianismo. Mas também temos que confessar que o processo interno da conversão dos germanos não pode explicar-se racionalmente com clareza, que, portanto, os fatores concretos que os conduziram à conversão são ainda menos inteligíveis que os que influíram nos povos do mundo antigo. Isto depende também da escassez de nossas fontes, que apenas nos dão informação exata da situação espiritual daqueles germanos e da evolução interna de sua conversão. Certamente se verifica ver uma certa nostalgia de redenção; as doutrinas do bom Deus, de seu reino vindouro e da comunhão dos santos, isto é, da vitória do bem, liberaram aos germanos de sua oprimente e trágica visão de um destino cego, aniquilador de deuses e homens 12; a fé na imortalidade da alma os oferecia uma solução ao atormentador enigma da morte (H. Rückert). Com razão se tem feito fundamento em certos aspectos que podiam facilitar a aceitação da fé em Um Deus Criador.

c) Mais importante que estes detalhes parece ser o fato de que os povos germânicos ou romano-germânicos brindaram à nova religião uma força étnica todavia virgem e (a medida que avançava sua cristianização) uma estranha e profunda sensibilidade.

A escassez de cultura no sentido indicado facilitou também que a língua da Igreja romana unificasse (mais ainda, configurasse) a liturgia da maior parte da Europa e, em geral, e durante séculos, toda a vida espiritual da Europa. A língua latina, língua da liturgia, de todas as frases doutas e de boa parte das comunicações públicas, foi, junto com a única Fé cristã, o mais potente fator de coesão das múltiplas tribos e forças germânicas dissidentes até chegar à cultura unitária eclesiástica medieval.

Não devemos aqui, naturalmente, passar por alto o reverso desta unificação; tal reverso se faz sobre tudo patente no amadurecimento do cisma do Oriente. Seus contornos se fazem palpáveis na identificação da christianitas com a romanitas ou latinitas a um com o repúdio dos graeci (ou barbari). Deste modo, os valores próprios, de todo legítimos, foram pessimamente compreendidos.

4. As desvantagens:

a) Já temos mencionado um primeiro perigo: consistiu em que o elemento natural-instintivo dos germanos pode sufocar a espiritualidade do cristianismo e sua elevada pureza. Em efeito, a piedade cristã perdeu em um princípio valores espirituais. As idéias religiosas, como as formas de vida religiosa, foram menos refinadas, se tornaram mais grosseiras. Isto dependeu em grande parte do fato de que nos primeiros séculos não houve uma língua para a pregação cristã: os dialetos germânicos careciam de terminologia adequada para poder expressar os "abstratos" dogmas cristãos. Muitos conceitos só puderam traduzirem-se superficialmente. Os germanos não tinham, por exemplo, o conceito de un dominus (senhor absoluto), senão o de um drochtin, chefe de partida a quem os adeptos seguiam livremente. Entre os conceitos germânicos tampouco havia uma palavra de todo equivalente ao conceito de "gratia" do Novo Testamento. "Gratia" veio a ser "favor," o favor do rei do céu com quem um contrai uma determinada relação de fidelidade para que se mostre propício nas vicissitudes do destino terreno. Surgiu assim a idéia de mútua ajuda ou prestação recíproca. Também para o pensamento e o idioma germânicos resultou difícil captar e expressar genuinamente o sacramental. Ficou na exterioridade ou se reduziu ao estaticismo. A união mística sacramental do homem-Deus Jesus Cristo com sua comunidade, expressada e operada em seu sacrifício, ficou reduzida a sua presença (missa como presencialização). E ainda se tomou menor consciência da sacramentalidade da penitência, porque aqui a idéia de reparação (baseada no princípio de prestação segundo tarifas, cada vez mais estendido) cobriu por inteiro a idéia de remissão sacramental, isto é, remissão ganhada por Cristo e presenteada nele ao penitente. Temos aqui uma das raízes do "moralismo" germânico, que pode desenvolver-se de múltiplas formas graças à excessiva rapidez com que se produziu a conversão das massas e que posteriormente resultaria funesto para a essência da religião. Outra das raízes é que a mentalidade germânica considerava tanto o pecado como a virtude, más desde o ponto de vista do fato que da interioridade. É certo que com isto não ficava excluída nem a reflexão nem a preocupação pela interioridade, mas ambas perdiam importância. Semelhante realismo tem suas vantagens, porque abarca ao homem e sua realidade. O pecado como perturbação da ordem exige uma reparação que não se pode operar com a simples mudança de sentimentos. Mas, por outra parte, esta atitude fundamental tende à exteriorização da ação, coisa que facilmente houve de entrar em conflito com a lei fundamental da "justiça melhor" cristã, a justiça interior.

b) O que própria e decisivamente abriu a possibilidade de uma conversão interior não foi que os germânicos possuíssem uma preparação ou algum dos conceitos fundamentais da doutrina cristã, com o qual poderia conectar a evangelização; foi mais bem a superioridade do cristianismo. Decisivo para a aceitação do cristianismo, pois, não foi nem em geral nem em primeiro lugar sua "verdade," senão o maior poder do Deus dos cristãos. Na Heliand (desde o ano 830) esta exaltado Jesus como o "mais forte dos nascidos, o mais poderoso de todos os reis, o herói mais valente," muito de acordo com o Muspilli da época e surpreendentemente (por influxo vétero-testamentário) inclusive com "o herói que luta e sofre" de Susón (§ 69). A questão da legitimidade da velha ou da nova religião não se toma entre os germanos, pouco dados à filosofia, como um problema de verdade; a questão não se projeta desde a doutrina, senão desde a realidade, que se entende como poder (o poder do novo Deus que eles experimentaram, por exemplo, na guerra e no "juízo de Deus"). Dentro da religião cristã isto encaixava perfeitamente com a doutrina do Deus todo-poderoso.

O feito de que a oração dos povos da primeira Idade Média não se dirigira tão preferentemente à majestade de Deus como a seus santos, cujas relíquias conservavam e podiam ver e tocar, implicava para eles um perigo especial, que com muita freqüência se manifestou em formas grosseiras e superstições de todo tipo, agravadas ainda mais até os fins da Idade Média. Por outra parte, também aqui se pôs de manifesto a riqueza do cristianismo e a sábia pedagogia da Igreja, que conscientemente (Gregório I, § 35) soube dar inclusive a estes povos imaturos, meios adequados a sua capacidade de compreensão com os que pudessem exaltar a uma piedade superior.

c) Os ideais dos novos povos se baseiam em boa parte no conceito de um poder externo, que submete ao adversário e se apropria de seus bens. A história da Igreja dos francos até Pepino, com as reiteradas confiscações de bens eclesiásticos de toda classe, compensadas por outro lado com um sem número de doações às igrejas e conventos 13, assim como com a usurpação de direitos eclesiásticos por parte dos príncipes, pôs de manifesto este perigo, que teve profundas repercusões na constituição eclesiástica (deformações do conceito da Igreja tanto local como territorial) e no que podemos ver anunciado o grande problema da luta subseqüente pela libertas da Igreja.

Outro tanto deve referir-se aqui, é que a importância de uma personalidade se media fazendo excessiva base em sua potência militar e em suas possessões. Assim é como o bispo germânico se converteu quase por necessidade em um proprietário de terras mundano e, posteriormente, em dono de um senhorio e em guerreiro, o que não poucas vezes teve de estar em contradição com seu ministério sacerdotal.

d) De acordo com as concepções antigas e as idéias germânicas, a religião e a ordem política, especialmente no início da Idade Média, apenas se mantiveram separados, salvo em casos em que os príncipes tentavam utilizar a Igreja em seu proveito ou, ao inverso, os bispos tratavam de acrescentar seu poder econômico e político. Isto acarretou uma vantagem muito peculiar, que deixou sua marca em toda a Idade Média: a íntima união da vida civil (isto é, de todo o profano) e a vida eclesial em ordem a uma unidade cultural, a unidade cultural específica da Idade Média 14. Mas também aqui aceitou um grave perigo. Os povos germânicos trataram por todos os meios de encadear o cristianismo a sua própria forma nacional. O perigo se agravou notavelmente pelo carácter particularista dos germanos (por exemplo, a tribo ou a família antes que o império). O perigo das Igrejas nacionais 15 (muito enraizado nos reinos arianos) e das Igrejas territoriais foi demasiado evidente inclusive nos reinos católicos (anglo-saxões, francos, burgundios, bávaros), com os quais não só se viu ameaçada a unidade da Igreja, senão que também se abriu uma fonte perene de secularização (politização); o perigo se fez realidade a princípios do século VIII na Igreja Franca, enriquecida pelo Estado, ou melhor em seus bispos proprietários de terra. Aqui prendem também as raízes do funesto princípio "pagão" (Engelbert Krebs): cuius regio, eius religio. Temos de ter em conta que semelhante politização do cristianismo e da organização eclesiástica, nas primeiras fases de seu desenvolvimento, em parte foi irrealizável e em parte esteve isenta de verdadeiro perigo, mas que com a progressiva maturação espiritual e religiosa o perigo se fez efetivo, chegando ao grau de perversão. Pois então a independência intrínseca de ambas esferas chegou a exigir, junto com sua coordenação, a necessária separação. Também tem que ter presente, a fins, que desde o princípio a Igreja, utilizando o poder real por ela consagrado, tratou por sua vez de conquistar o âmbito do secular, sem dar-se conta, nem suficientemente nem a tempo, da necessária independência do mundano.



IV. Regime da Igreja Privada.

Sua interdependência com o mundo.

1. É no regime da igreja privada que acabamos de mencionar donde o pensamento germânico exerceu sua mais forte e indiscutível influência sobre a vida da Igreja medieval. Tanta importância teve este regime para toda a história da Igreja, que teremos que voltar a ocuparmos dele com maior detalhe. Em boa parte convergiram nele todas aquelas desvantagens que o mundo germânico implicou para a missão da Igreja. Também nela se faz ver com toda claridade a ambivalência daqueles fatos e situações histórico-eclesiásticas da Idade Média que deram lugar a pouco menos que inevitável tragédia da história da Igreja Medieval, tragédia que uma e outra vez nos ocupará e inquietará no contexto da luta entre o sacerdotium e o imperium.

a) A igreja fundada pelo senhor feudal germânico estava de tal modo submetida ao seu domínio, que não só dispunha dela por direito patrimonial, senão que sobre ela exercia o pleno poder da direção espiritual (U. Stutz). É certo que o próprio altar, ou o santo patrono da igreja cujas relíquias descansavam nela, chegou a ser o centro ou o "titular" do patrimônio necessário para o funcionamento e sustento da igreja (edifício e decoração do templo, cemitério, casas paroquiais, terras e tributários, parte correspondente dos ingressos propriamente eclesiais). Mas o altar, pelo solo sobre ao qual estava erigido, seguia sendo indefectivelmente propriedade do senhor. A dotação de um altar não significava para ele mais que o transpasso de certos bens imóveis, certos valores e certos direitos usufrutuais de seu patrimônio livre a um patrimônio coletivo especial.

Originariamente livre para modificar ou suprimir o status de pertinência, o senhor do altar, devido à legislação carolingia, teve depois que admitir uma limitação de seus direitos, enquanto que os bens, uma vez entregues ao altar, já não podiam voltar a serem alienados. Mas como um todo, a igreja privada pode, tanto antes como depois, ser vendida, hipotecada ou herdada. Também a co-propiedade ou a participação dos direitos de propriedade foi possível e, ao longo, inevitável pela complexidade da sucessão hereditária. Em caso de que os bens da igreja não se requeressem para o funcionamento e manutenção da mesma, era ao senhor quem correspondia o usufruto do excedente e até o direito a tomar parte das primícias, oferendas e direitos de estola dos fiéis 16. Se o senhor tinha em funcionamento várias igrejas ou lograva herdar direitos paroquiais ou dízimos, seus ingressos aumentavam consideravelmente. A possessão das igrejas se converteu assim, posteriormente, em uma empresa econômica rentabilíssima em nome do santo patrono da igreja.

Quando o senhor era sacerdote, ele mesmo exercia sem outro intermediário a direção espiritual da igreja. Em caso contrário designava um sacerdote, que ao princípio solía ser um servo o um mercenário pago (mercenarius ou conductus). Desde o ano 819 o sacerdote tinha que ser necessariamente um homem livre ou ao menos liberado para este fim, ao qual logo, em caso de empréstimo (em suas distintas formas e com distintas taxas) também era prestado a uma com a igreja privada. Estando assim as coisas, a influência do bispo ficava pouco menos que excluída. Desde logo, só o bispo podia consagrar o altar e a igreja e conferir as ordens a seu sacerdote oficiante. Mas o clero das igrejas privadas era inteiramente dependente da corte e do pão do senhor, de forma que resultava ponto menos que impossível controlar sua ação ministerial. Em um estado de anarquia eclesiástica, ao fim do reinado de Carlos Martel, a Igreja logrou limitar parcialmente as atribuições do senhor do altar, fixando os bens da Igreja, assegurando a posição dos sacerdotes e estabelecendo certos direitos de inspeção episcopal.

b) Em iguais condições que as igrejas menores se encontravam também os mosteiros. Em vez dos conventos constituídos ao modo romano, com direitos de corporação e com um abade livremente eleito e confirmado pelo bispo, apareceram os mosteiros privados germânicos, que, salvo pequenas variantes, compartiram a sorte das igrejas privadas. Quando já havia grande número de regras monásticas, o próprio senhor decidia por qual delas tinham que regerem-se os monges de seu convento.

Em sua raiz, o sistema da igreja privada é romano e germânico. Por isso o encontramos tão difundido no Ocidente. Donde queira que este sistema, no curso da invasão dos bárbaros e de sua progressiva cristianização, chocou com a velha constituição episcopal pública e jurídica da Igreja, houve discussões, mas nelas a igreja privada quase sempre se impôs sobre a igreja episcopal. Na Francônia, o sistema da igreja privada se deu já desde meios do século VII.

2. Um direito estrangeiro conquistou, pois, inclusive a constituição da Igreja. Bispos e mosteiros possuíram desde então a maior parte de suas igrejas na modalidade de igreja privada, e deste modo fizeram a competência aos senhores leigos das igrejas germânicas.

a) Toda a importância desta acometida se fez patente em um fato: foi que o conceito jurídico da igreja privada marcou de forma imperceptível as relações dos reis e nobres francos com as igrejas episcopais, os bispados e inclusive as abadias até então livres. O modelo dos imperadores romanos orientais, supremos senhores da Igreja, experimentou desde este momento uma transformação especificamente germânica, cuja peculiaridade se manifestou de forma mais intensa na crescente feudalização do poder espiritual. Desde fins do século IX os reis, grandes proprietários de igrejas e conventos privados, conseguiram progressivamente impor frente aos bispos os princípios do sistema da igreja privada.

Já em Hincmaro de Reims (§ 41) havia translúcido a idéia (que chegaria a parecer óbvia na época pós-carolíngia) de que os bispos receberam seu episcopado como benefício de mãos do rei. Desde esta perspectiva está claro que a investidura secular (§ 48) deve contemplar-se sobre o fundo do sistema de igreja privada. De outra maneira seria inexplicável que frente aos bispos e abadias livres puderam aumentar tais direitos (típicos do sistema de igreja privada) de uso fruto provisionais e testamentários. Pequenos bispados acabaram sendo propriedade de duques e condes e, como as igrejas privadas, foram vendidas, penhoradas, herdadas ou dadas como dote.

Este direito estranho, graças à sua preponderância, chegou até a obter por algum tempo o reconhecimento papal (com Eugênio II no sínodo romano do ano 826; com Leão IV no sínodo do ano 853). Tem que ter presente, que em alguns de seus elementos típicos ainda se seguiu em vigor, inclusive ali donde a Igreja mais duramente o combateu e finalmente superou (na luta das investiduras). Na legislação eclesiástica por todas as partes encontramos suas conseqüências mediatas ou não mediatas, como, por exemplo, no surgimento do mosteiro privado papal e de sua conseqüente isenção, na instituição dos benefícios eclesiásticos, no direito de patronato e, sobretudo, naquelas exigências de usu fruto financeiro dos bens da Igreja que aparecem no fiscalismo papal da tardia Idade Média (para as diferentes formas de tribulação, cf. § 64).

b) No que atém à valoração religioso-teológica do sistema germânico das igrejas privadas, à vista estão seus inconvenientes. Em primeiro lugar está a perigosa dependência do ministério espiritual dos poderes materiais e patrimoniais; a possessão do solo sobre o que se aumenta a igreja leva direta e indiretamente à possessão de uns direitos eclesiásticos espirituais. Apenas haverá um exemplo melhor e mais crasso da desordem germânica de ambos os campos, e ainda com essa típica tendência a fazer descer o espiritual e sobrenatural ao terreno e mundano. Nesta atitude se manifesta um egoísmo estranhamente contradictório: um presente, doa-se inclusive igrejas para o culto divino, mas "se doa ricamente a si mesmo"; a fundação, de primeira intenção espiritual, obtém elevados ingressos, o que ao longo não pode deixar de repercutir na mesma intenção. Também aqui se faz ostensível a mentalidade do do ut des. É uma ofuscação que deve ter-se presente ao processar a generosidade medieval e especialmente seu cultivo por parte do clero e dos monges.

Porém a multidão de formas piedosas, estas doações nem sempre foram expressão de perfeição cristã: por exemplo, em tempos de carestia, a muitos "livres" mas pobres só ficava a possibilidade de entregarem seus bens a um convento ou a um bispo se quisessem verem-se exonerados do serviço militar ou da obrigação de atender às reuniões solenes.

A incompatibilidade de todo este sistema jurídico com o cristianismo já se evidência no mesmo nome de "igreja privada": o homem não pode ter sua "própria igreja privada." O fato de que nos tempos seguintes o sacerdotium e o regnum, por distintas motivações, infringissem esta exigência fundamental cristã foi o que fez provocar a grande crise do universalismo medieval.

Por outra parte, tampouco deve esquecer-se da inevitabilidade histórica nem as benéficas conseqüências do sistema da igreja privada: a isto se deve a florescente vida cristã que através das paróquias do povo e de inumeráveis oratórios e capelas que alcançou as mais longínquas zonas rurais da Europa medieval.

3. De múltiplas formas tratará a Igreja de superar o perigo do isolamento e da reificação. Se buscarmos uma palavra chave, capaz de aglutinar formalmente os diversos meios, poderíamos mencionar o universalismo. O cristianismo é a mensagem salvadora de Deus feito homem; religião da humanidade e, pela mesma, expressão de um universalismo religioso essencial que a Igreja jamais pode perder.

Mas o perigo de ruptura daquela unidade, que abarcava todos os âmbitos da vida, não foi conjurado para sempre. A enorme tarefa educativa dos clérigos e monges medievais entre os povos ocidentais também teve como meta, por sua própria natureza, sua maturação e autonomia. O processo educativo fez que a vida cristã cultivada pela igreja alcançasse um esplêndido desenvolvimento; com isto fez também que se desenvolvessem as peculiaridades do caráter germânico. Enquanto estas peculiaridades começaram a interferir na tarefa da Igreja, semearam a semente de sua posterior decadência. Assim surgiu essa forma de realidade eclesiástico-medieval, fortemente condicionada pelo tempo histórico, que em parte e ao longo impediu precisamente a necessária solução harmônica.

Pois tanto o pensamento como a vida independente dos povos germânicos se aproximava agora do cristianismo com seus próprios problemas ou aspirações, tratando de imprimir em suas particularidades ainda em aspectos essenciais, igual que o fizeram na Antigüidade a civilização judaica, grega e romana (§ 5). Entre os germanos, e especialmente entre os teutões e os escandinavos, este perigo revestiu particular gravidade na baixa Idade Média. Pois todas as peculiaridades do carácter germânico levavam dentro de si uma radical inclinação ao particularismo, tendiam ao separatismo em todos os sentidos 17, e tudo isto com tendência a totalizar o separado (ilicitamente separado da harmonia da comunidade).

4. As causas da dissolução se concretam e evidenciam no trágico conflito entre o papado e o Império, no fundo do qual o problema que tarde não é outro que o da relação cristianismo-mundo. A hierarquia e o monacato tenderam a lutar com o produto de sua própria educação: a) se foram formando as individualidades nacionais (os modernos Estados ou "nações" frente ao Sacro Império Romano universal), que estenderam suas particularidades a todos os âmbitos da vida superior: dissolveu o universalismo e apareceu a característica determinante dos novos tempos, o particularismo. b) Frente à unidade do objetivismo medieval surgiram surtos de subjetivismo. c) O clero, representante nato da Igreja universal, foi substituído como agente da cultura pelo representante da pluralidade nacional, o laicato. Este processo de dissolução chegou a sua plenitude no humanismo e no Renascimento. Foi fatal que dito processo afetasse também ao campo religioso-eclesiástico propriamente dito, desembocando assim nas grandes criações das igrejas sectárias e nacionais dos hussitas e a Reforma. Isto, desde logo, só foi possível historicamente porque na mesma Igreja a idéia do universalismo objetivo já havia perdido muito de sua pureza e firmeza no sentido antes indicado e, especialmente, pelas super-estruturas irreligiosas.

5. Uma característica fundamental penetrou, guiou e coloriu esta evolução interna: a volta da Igreja á cultura.

a) Na Antigüidade a atitude da Igreja ante a cultura havia sido muito variável. E não pode ter sido de outro modo porque, visto que desde a perspectiva do cristianismo, a cultura então existente estava separada: continha valores provenientes de Deus e, nem por isso, em seu conjunto era contrária a Deus, pagã.

Mas desde que a Igreja ficou livre no Império Romano, pode expressar cada vez mais e melhor seu próprio modo de pensar e de entender a vida, inclusive publicamente. Ela mesma e seus representantes, os bispos, chegaram a constituir um fator determinante da vida pública; a vida pagã adquiriu características cristãs. Porém, não se chegou a uma cultura nascida por inteiro de raízes cristãs. Agora, em troca, no início da Idade Média, os homens da Igreja puderam criar uma vida cristã em seu aspecto exterior e, pouco a pouco, também em sua realidade interior: o curso do ano se dividiu segundo as festas e tempos do calendário cristão, o curso da semana começou com o domingo cristão (no qual todos os fiéis vão juntos à igreja). Posteriormente, a imagem da cidade ou do povo começou a caracterizar-se pela igreja e sua torre, ou por um convento dentro da cidade ou fora, e pelos hospitais. No século VI se introduziram os sinos, procedentes do Oriente (muito pequenos até o século XI), que anunciavam o começo da missa e do ofício divino, assinalando assim a distribuição do dia (o toque do ângelus só a partir do século XIV). As casas se adornaram com ornamentos cristãos (imagens comemorativas de Jerusalém, donde surgiu o culto da cruz; imagens da crucifixão, incremento devagar desde os séculos IV/V); a literatura se ocupou de temas cristãos, inclusive durante muito tempo só teológicos; as leis começaram a levar em seu encabeçamento a confissão do Deus trino; os processos judiciais adotaram o juramento cristão. Para os povos jovens a Igreja se converteu em "a fonte de toda a tradição política e jurídica, de toda a formação, de toda a cultura e a técnica... Aqui a Igreja configurou o Estado e o dominou, e com seu espírito regulou a ciência e a arte, a família e a sociedade, a economia e o trabalho" (Troeltsch).

b) Com esta positiva colaboração na cultura a Igreja operou uma transformação que resultou decisiva para seu trabalho e para o jogo das forças ocidentais.

Se realizou uma transformação interior que dominou diretamente toda a vida medieval, elevando-a a sua máxima altura e florescimento, mas que logo também foi causa de sua decadência religiosa e eclesiástica. É importante por em relevo desde o princípio que esta decadência não sobreveio por acaso, senão que aceitava como perigo imediato na mesma orientação da Igreja para a cultura: um inevitável dilema entre o dever, a altura de vista e o fruto visível por uma parte, e uma implícita ameaça da mensagem cristã por outra!

Novamente nos encontramos ante o problema fundamental da história da Igreja: revelação e mundo ou, mais exatamente, ante a questão fatídica da Idade Média: logrou a Idade Média eclesiástica o batismo do mundo, da política, da ciência, em uma palavra: da cultura, ou talvez só conseguiu uma espiritualização excessivamente rápida e superficial do terreno, que de rejeição devia provocar, com toda certeza moral, uma secularização do espiritual? Nos encontramos diante de uma conseqüência da insuficiente separação de ambos os campos, ou seja, ante uma satisfação insuficiente das legítimas exigências de ambas as esferas, isto é, ante uma incompleta liberdade no âmbito do terreno junto a uma deficiente pureza do religioso-eclesiástico?

6. Por outra parte, o fato de que aqueles povos jovens foram culturalmente pobres no sentido indicado, assim como o fato de que a missão da Igreja como única e verdadeira fonte de salvação havia de ser a de conformar no possível toda a vida e todo o mundo à vontade de Cristo, fez que este giro fizesse a cultura aparecer como um dever inegável.

A Idade Média eclesiástica é, pois, um tempo de evolução no sentido especialmente profundo (no sentido de que algo, todavia amorfo ao princípio chegou a adquirir sua forma).

Seu conteúdo religioso-cristão, contudo, deve ser perfilado com precaução. Tem que guardar-se de toda estima exagerada ou superlativa. A Idade Média está repleta de esplendores cristãos. Mas de nenhuma maneira é um tempo da ecclesia triumphans na terra. Na medida em que a Idade Média teve esse juízo de si mesma e as sucessivas gerações se apropriaram, nessa mesma medida tem a umas e a outras uma idéia equivocada. O cristianismo exige a metanoía pessoal, vive da palavra de Deus pela fé e pelo sacramento. Justamente partindo destes elementos essenciais é preciso que o juízo sobre a cristandade da Idade Média seja muito diferenciado. Os limites da conversão interior no sentido do evangelho se fazem patentes no problema das conversões de massas, no moralismo medieval (§ 35:3) e nas dificuldades que impedem a penetração da mensagem de salvação na totalidade do povo, como também no escassíssimo acesso das massas ao sacramento da Santa Comunhão, atitude esta à qual se opunha à idéia satisfactória e fortemente moralista da penitência (§ 36, Igreja iro-escocesa).



V. Subdivisão Temporal.

1. Uma olhada geral à história da Igreja antiga desde Constantino o Grande, permite observar um processo crescente de unificação: o nascimento da Igreja imperial. Na Igreja ocidental este processo esteve acompanhado pelo incremento da autoridade da cristandade romana e de seu primeiro bispo, o papa (este incremento pode estudar-se com a máxima clareza no Papa Leão I e Gelásio; cf. § 24). A convergência desde a unidade apresentou muitas lacunas, mas foi providencial. Sem ela a Igreja não poderia cumprir sua missão na Idade Média. Seu trabalho se viu perigosamente interrompido pela invasão dos povos bárbaros: desde a queda do antigo Império Romano universal a Igreja não se encontrou com uma nova estrutura, senão com toda uma série de estados germânicos separados entre si e autônomos, de extensão instável e de insegura coesão interna, que eram, arianos ou pagãos.

2. O começo da Idade Média oferecia, pois, condições muito desfavoráveis para uma evangelização unitária. A missão, por isto, ocupou os primeiros séculos seguintes à invasão dos bárbaros: é a primeira época da Idade Média. É o tempo da fundamentação: primeira penetração da Igreja nos novos povos germânicos, estabelecidos no solo do Império Romano. Esta época alcança parcialmente até meados do século VIII: a época dos merovíngios.

Esta fundamentação não deve em absoluto imaginar-se como uma perfeita planificação pensada, por exemplo, pelos bispos de Roma. Se o impedia sencivelmente seu insuficiente conhecimento das necessidades da Igreja e as possibilidades dos distantes povos germânicos (§ 37). Mas, desde logo, é surpreendente ver como a consciência missionária do papado impulsionou a cada um dos bispos de Roma, ainda em meio de suas tribulações políticas e eclesiásticas, a contribuir, recebendo umas vezes e dando outras, à fatigosa criação da nova, incipiente unidade ocidental.

3. A segunda época começa quando o papa concerta a aliança com os francos, a maior potencia secular do Ocidente, e logo associa ao papado, o novo império ocidental, como representante dos povos germânicos (meados do século VIII e ano 800; Pipino, Carlos Magno).

Primeiro é o poder político (especialmente o Império franco-teutão) a força dirigente frente ao papado: a primeira Idade Média (aproximadamente entre os anos 750-1050). Subdivide-se em dois períodos separados por um interregno caótico (o saeculum obscurum, finais do século IX até meados do século X): 1) período da cultura carolíngia; 2) período dos Otões (Império teutão). Um dos pressupostos que fazem possível e compreensível este predomínio do poder político é, em ambos os casos, a idéia aceita (e inclusive promovida) pela Igreja 18 da dignidade sagrada do rei franco e do rei romano-germânico, logo ambos os imperadores, que estão equiparados ao supremo sacerdócio para dirigir à Igreja. E por isso nesta época (até Canossa) o predomínio do imperador deve entender-se sobre o fundo de um dualismus de governo na Igreja (papa e imperador; "sacro Império").

Este "dualismo" é algo muito mutável; também temos que entendê-lo como uma forte competência. Cada um dos dois poderes trata de utilizar um ao outro em proveito próprio e por em ato a preponderância imperial ou papal, segundo os casos. Precisamente nesta época de efetiva preponderância imperial, a criação da sagrada dignidade imperial e a idéia da translatio imperii, por exemplo, são um meio em mãos dos papas para subordinar à autoridade espiritual (principatus sacerdotium) o poder, todavia autônomo do rei ou do imperador. E, ao inverso, o imperador aspira à jurisdição completa, como "representante de Deus" (vicarius Dei), frente ao qual o papa somente seria um bispo "de segunda ordem."

A causa imediata do predomínio imperial reside simplesmente no fato de que o imperador tinha em sua mão a espada e que em ambos os casos se tratava de tempos de fundação de uma realidade "política" não só internamente organizada, senão externamente representada. Mas, em tais casos, o que em princípio decide é sempre a potência externa.

A Igreja, desde os tempos das primeiras missões e muito mais depois da aliança do papado com os carolíngios, sempre se apoiou no braço secular; dele reclamava firmeza política e econômica. A proteção concedida pelos donos do poder político foi interpretada, por sua vez, como uma dependência da hierarquia e reivindicada como um braço direito do secular, reconhecido pela Igreja. Mas a hierarquia, uma vez assegurada sua existência, irá apresentar (expressa e conseqüentemente) suas reclamações; e isto nos leva à época seguinte.

4. A terceira época começa efetivamente quando o papado, com a reforma de Cluny e de Gregório VII, faz passar a primeiro plano novos pontos de vista sobre a relação entre ambos os poderes, projeta radicalmente suas já generalizadas pretensões de primado (Leão I, Gelásio I, "doação de Constantino") e, desta forma tão exacerbada, inicia a luta pela liberdade e a primazia. Leva a cabo vitoriosamente e defende logo sua posição em uma dupla luta defensiva contra o império dos Hohenstaufen: 1) a época das aspirações de hegemonia do papado frente ao império (séculos XI-XII); 2) papa e Igreja como força predominante em todo o Ocidente cristão (século XIII): a alta Idade Média.

Esta evolução se caracteriza por uma progressiva clericalização da Igreja e pela correspondente e fatal repressão do elemento secular: no importante processo de dessacralização tanto do "sacro" Império e de sua dignidade imperial como de grande parte da cultura.

Este provocou um grave transtorno do equilíbrio e uma perigosa mescla de ambos os campos em mãos do papado, porém que, pelo contrário, o poder secular não se sentia satisfeito no concernente a sua independência e evolução. Houve em tudo isto um exagero que assentou as bases para o debilitamento dentre ambas as partes da anterior "aliança" intra-eclesial e, como já dizemos, para a separação hostil de ambos os campos: a quarta época.

5. A quarta época se caracteriza: 1) pelo retrocesso da típica forma medieval do papado e pela dissolução das atitudes espirituais específicas da Idade Média; é o tempo 2) do assentamento dos modernos poderes nacionais e das novas atitudes espirituais, mas seculares, assim como do assalto e penetração de uns e outros no papado: a baixa Idade Média (séculos XIV e XV).

6. O nome da Idade Média é um produto da presunçosa auto-estima dos humanistas; a princípio queria desqualificar o tempo que vai desde a Antigüidade clássica até sua reaparição no Renascimento como um parêntese carente de cultura. Desse mesmo espírito procede também a expressão "a escura Idade Média" 19. Mas a época como tal se entendeu a si mesma primeiramente como civitas Dei ou como orbis christianus.

Hoje já sabemos todos que a Idade Média desenvolveu em todos os campos forças culturais de primeira categoria e realizou obras de valor permanente. Além, sem a Idade Média não teria existido o Renascimento, que tantas vezes, especialmente em tempos pretéritos, se tem utilizado para desqualificá-la, e apenas teria sido possível um autêntico acesso ao antigo; a humanidade moderna sem a Idade Média seria duplamente pobre. Por muito que o Renascimento queria distanciar-se do modo de ser medieval e ter uma fisionomia própria e independente, algumas de suas raízes aprofundam tanto na Idade Média que sua própria natureza só pode ser compreendida integramente se também estas forças nutricias se consideram como essenciais. Muitos elementos da liturgia, a filosofia, a teologia e o direito canônico, muitas formas da administração e da arte, que no Renascimento alcançaram plena autonomia, nasceram da cultura monástica medieval.

1 É característico que com a diminuição do perigo e da ameaça também cai no esquecimento a nova autodenominação.

2 Estas tendências se encontram refletidas, de forma especialmente plástica, na Donatio Constantini: § 39.

3 Como no Oriente não se efetuou a distinção entre Igreja e império, ou não se efetuou verdadeiramente, também na falta a temática central que fez surgir a Idade Média em seu sentido essencial.

4 Ainda, a mais marcada atitude de adoração, a diferença da oração impetratória no Ocidente.

5 Itália meridional até meados do século XI.

6 "Válidas" significa algo mais que "corretas" !

7 Incluidos os vícios de sodomia e bestialidade, chocantes em um povo tão são.

8 Universalismo significa que o pensar e o agir estão guiados por pontos de vista gerais, mas unitariamente orientados, em contraposição ao particularismo, que é o fracionamento em elementos individuais.

9 O clero, como representante da Igreja, era o único que, ao começo da Idade Média, se falava em possessão das forças superiores religiosas, morais, intelectuais e culturais em geral (administração, técnica), das que surge a vida medieval.

10 Regnator omnium Deus. Isto significa para os semnones (galos) certa limitação do que posteriormente afirmamos (o conceito de um senhor absoluto era desconhecido entre os germanos), mas não o suprime.

11 Três seres divinos da mesma grandeza = trindade; Odín no patíbulo da Weltesche (luz do mundo) = Jesus na cruz.

12 Pelo menos isso nos diz a tradição dos anglo-saxões (Beda).

13 Acerca dos problemas intrínsecos de tais "doações," cf. apartado IV: "O sistema da igreja privada."

14 Esta compenetração não foi igualmente estreita em todas as partes de Europa. Em nenhuma outra parte foi tão sólida como na Alemanha do sistema da igreja privada e dos bispos investidos com feudos imperiais; especialmente na França a união foi muito mais débil. Mas a forma agrária continuou sendo essencial para toda a Igreja medieval, tanto mais quanto que só dali extraiu os meios de subsistência.

15 O termo "nacional" no sentido rigoroso só é aplicável a circunstâncias posteriores. Aqui se emprega para distinguir as Igrejas arianas "separatistas" das Igrejas territoriais católicas dentro do império.

16 Direitos de estola são certos donativos que se fazem com ocasião da administração de sacramentos ou de outros serviços religiosos. Na Igreja primitiva estavam absolutamente proibidos e unicamente entraram no direito eclesiástico através do regime de igreja privada própria.

17 Naturalmente, com isto não se nega o alto valor deste traço característico: as maiores obras alemãs no campo espiritual tem suas profundas raízes, possivelmente as mais profundas, nesse particularismo individualista: música, literatura, filosofia, mística, piedade popular. Mas sempre fica o interrogante de si a integração de valores objetivos, universais não apresentariam dificuldades especiais.

18 Isto é válido apesar das antigas raízes germânicas das que também se nutre o conceito de "pela graça de Deus" dos príncipes cristãos.

19 Na história da Igreja se atribuem, e com razão, ao século IX/X o saeculum, obscurum, especialmente na Itália.



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Sacerdote ortodoxo e busco interessados na Santa Fé, sem comprometimentos com as heresias colocadas por aqueles que não a compreendem perfeitamente ou o fazem com má intenção. Sou um sacerdote membro da Genuina Igreja Ortodoxa da Grecia, buscamos guardar a Santa Tradição e os Santos Canones inclusive dos Santos Concílios que anatematizam a mudança de calendário e aqueles que os seguem, como o Concílio de Nicéia que define o Menaion e o Pascalion e os Concílios Pan Ortodoxos de 1583, 1587, 1593 e 1848. Conheça a Santa Igreja neste humilde blog, mas rico no conteúdo do Magistério da Santa Igreja. "bem-aventurado sois quando vos insultarem e perseguirem e mentindo disserem todo gênero de calúnias contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos pois será grande a vossa recompensa no Reino dos Céus." "Pregue a Verdade quer agrade quer desagrade. Se busca agradar a Deus és servo de Deus, mas se buscas agradar aos homens és servo dos homens." S. Paulo. padrepedroelucia@gmail.com