sábado, 23 de julho de 2011

16. Heresias nos Séculos II e III: Monarquianos, Gnose, Marcion, Maniqueus.

16. Heresias nos Séculos II e III:
Monarquianos, Gnose, Marcion, Maniqueus.

1. Antes de haver heresias expressamente formuladas, já alguns propagadores do evangelho pregavam coisas um tanto heréticas. Se exagerava, por exemplo, no papel dos anjos, ou mesmo Jesus era qualificado como anjo. Por um desmesurado desprezo da matéria, ou mais propriamente do corpo, alguns ensinavam que o Senhor só havia tido corpo aparente (docetismo) ou condenavam como pecaminoso o matrimônio e o comer carne (como já sucedeu nas comunidades paulinas, 1Tim 4:3).

a) O judaísmo não conhecia mais que uma forma de monoteísmo: o da fé em um só e único Deus. Jesus, plenamente imerso na tradição judaica da fé monoteísta, havia trazido a mensagem do Pai; enquanto o Messias, se havia colocado a seu lado como Filho e havia anunciado ao Espírito Santo. Sobre as relações íntimas destas três pessoas não havia dado muitas indicações: Eu e o Pai somos um (Jo 8:16); o Pai é maior que eu (Mt 24:36); quando vir o Espírito de verdade (Jo 16:13). E, ademais, o mandato de batizar, que põe aos três em igualdade, um junto a outro (Mt 28:19). Segundo esta pregação, Jesus ensinou a Igreja a crer em um Deus Pai, criador do céu e da terra, no Deus Filho e no Deus Espírito Santo, no Deus uno e trino. Surgiu o problema de como Deus é uno, sendo Deus tanto o Pai como o Filho; apartir do século II este foi o centro das controvérsias doutrinais.

b) A primeira tentativa de explicação, fizeram os apologetas (especialmente Tertuliano). Mantendo inquebrantável a plena divindade do Filho, não se apartaram nem um ápice da norma da fé ortodoxa. Mas em seu empenho por encontrar a formulação científica de sua profissão de fé, consideraram ao Filho subordinado de algum modo ao Pai (subordinacionismo). A idéia básica da Escritura, que sempre apresenta ao Pai como único Senhor e concessor do reino dos céus e à vontade do Pai como a ultimamente determinante, parece que reclamava, ao igual que certas expressões isoladas, estes conceitos monárquicos. A fé era irreprovável, mas sua formulação científica defeituosa.

c) Outros, pelo contrário, chegaram a rebaixar e incluir a negar a plena divinidade do Filho ou consideraram ao Filho como uma simples aparência do Pai (modalistas, patripasianos). Estas heresias não tiveram grande difusão nos séculos II e III, mas com a aparição de Ário (§ 26) constituíram uma verdadeira ameaça.

Não faltaram escritores que, combatendo uma heresia manifesta em um determinado ponto, não souberam evitar cair em erros doutrinais em outros pontos. Praxeas (+ 217), que combateu o montanismo, difundiu a sua vez uma doutrina monarquiano-patripasiana.

2. O maior perigo para a jovem e gentil Igreja cristã, talvez o máximo com que jamais se havia enfrentado, foi a gnosis (ou o gnosticismo).

Essencialmente se trata de um movimento religioso pagão dos primeiros séculos de nossa era. A gnose herético-cristã, que é a única que interessa à historia da Igreja, é só uma parte deste vasto e complexo movimento, que no fundo não é mais que uma mistura de religiões (sincretismo).

Este sincretismo, com sua quase sempre inextrincável e confusa proliferação, suas múltiplas variedades e sua mistura de idéias religiosas, tem sido uma das forças determinantes da vida psíquico-espiritual da humanidade do ecumene apartir da expedição de Alexandre Magno até ao Oriente, logo como rejeitou desde o Oriente até o Ocidente e, novamente, como consequência da expansão do Império romano nas antigas zonas culturais do Oriente (§ 4). Durante este processo, que durou séculos, as religiões populares como as idéias filosóficas se penetraram mutuamente: se intercambiaram nomes, imagens, figuras e mitos ou interpretações de origem do cosmos, da purificação do pecado e do perdão. Tudo andava misturado e mal interpretado pelos homens cultos, tão ascéticos como ansiosos de religião, ou completamente materializado pelo povo supersticioso.

O sincretismo, donde queira que de uma ou outra maneira se ocupou das finalizações metafísicas, facilmente se fez panteísta ou quando menos panteizante. Mas nos processos cósmicos descritos o elemento panteísta não se apresentava como amorfo, senão com caráter gradual; ao qual se aplicava tanto aos eons emanantes de dois em dois como às três distintas classes de homens movidos pelo poder divino: gnósticos, písticos, hílicos.

Quando a gnosis trabalha con elementos cristãos, o processo de mistificação se evidência a si mesmo na reelaboração da literatura apostólica recebida, que "é consertada, recopilada e completada com produtos próprios" (Schubert). E este serve tanto para a gnósis siríaca, que fez uma seleção puramente arbitrária, como para os sistemas especulativos muito mais exigentes (como, por exemplo, o de Basílides).

Gnose significa "conhecimento." Nos movimentos religiosos pagãos dos séculos I e II como na heresia cristã que denominamos gnose, a palavra não significa conhecimento em geral, senão conhecimento salvífico, conhecimento de índole religiosa. Já Paulo se havia esforçado para que suas comunidades construíssem sobre o primeiro fundamento da pregação um edifício mais alto, até chegar a uma "epignosis" (conceito superior) do evangelho (Ef 1:16ss). Mas entre este conhecimento superior estava, segundo Paulo, destinado a todos os cristãos, no século II apareceram dentro do cristianismo pregadores de uma nova doutrina, que afirmavam que existia um misterioso conhecimento salvífico que era só acessível a uns poucos, é dizer, aos "iluminados" (= gnósticos), e que esta gnose era diferente da fé (pistis) e superior a ela 48. Em um hino gnóstico disse Jesus ao povo: "Eu darei a conhecer o escondido do caminho santo e o chamarei gnose."

Um traço característico da gnose, que também era efetivo frente a outras religiões, consistia em não tomar o evangelho tal como era comunicado aos demais fieis; buscavam significados profundos, algo especial só para iniciados. E isto, por suposto, o pretendiam desde o ponto de vista religioso, ao qual, no fundo, é tanto como dizer desde o ponto de vista de uma doutrina redentora. O conhecimento misterioso — esta era sua opinião — não só obra a salvação; ele mesmo é a redenção. E esta se verifica, de um ou outro modo, no âmbito do anímico, ainda que primordialmente está condicionada pelo cósmico: ao proto-Deus e às forças divinas (lumínicas) que dele dimanam se opõe à matéria, má por si. Aqui nós falamos, pelo conseguinte, ante um conceito dualístico do mundo, tal como claramente havia sido definido pela primeira vez por Zaratustra, a dizer, que os gnósticos admitem junto a Deus bom e eterno a existência da matéria má, igualmente eterna. O mal do homem consiste em que sua melhor parte se separou da esfera do bom Deus (luz) intrincando-se na matéria. Por isso a redenção significa que essa melhor parte, a luminosa, seja liberada da matéria e conduzida de novo à esfera do sumo Deus (= subida). Na gnose cristã, o papel de mediador corresponde a um ser celeste que se chama Cristo, do qual se afirma que o bem habitou no homem real Jesus ou tomou um corpo aparente (docetismo).
Às vezes a misteriosa doutrina redentora vem acompanhada de ritos similares aos sacramentos. Aqui se faz patente a diferença entre autêntico sacramento e magia: uma misteriosa fórmula ou cifra, por exemplo, converte ao iniciado em homem redimido aqui ou depois de sua morte. Sobre tudo neste ponto central da doutrina cristã, no conceito de redenção, se evidencia a grave deformação, a arbitrária e fantástica tergiversação dos elementos cristãos adotados pela gnose.

Porque do que aqui se trata sencivelmente, como se tem dito, é que o espírito se libere da matéria que o cerca, e não de que a alma caia interiormente livre do pecado.

3. Houve até trinta sistemas diferentes de gnose. Só possuímos resíduos de sua literatura original; muitas coisas as sabemos unicamente através de fontes cristãs. Ensinamentos altamente instrutivos e em sua maior parte autênticas nos oferecem as recentes descobertas, já estudados em parte, de Nag'Hammadi no Egito. Estas descobertas nos dão a oportunidade de escutar aos mesmos gnósticos e comprovar o valor das exposições dos escritores eclesiásticos ( sendo eles: Ireneu, Hipólito e Epifânio).

Em todos os sistemas há pensamentos da história da revelação judeu-cristã e elementos da filosofía da religião greco-oriental. A mistura é muito variada. Em alguns sistemas predomina o elemento cristão, mas, como já se tem dito antes, o principal não é a humilde aceitação do anúncio da fé, senão que sempre vá por diante a tentativa de construir uma imagem do mundo mediante a razão, que livremente decide. Não raras vezes a razão é substituída pela fantasia e a extravagância (especialmente na gnosis oriental propriamente dita). Característico é o modo e maneira como as sencíveis palavras da Escritura são inchadas, selecionadas e misteriosamente retocadas.

Alguns gnósticos eminentes: Basílides, que provavelmente ensinou na primeira metade do século II no Egito, especialmente em Alexandria. Seu discípulo foi Valentino, que deu seu nome a uma importante seita. Nascido em Alexandria, ensinou em Roma entre 130 e 160 e ali, por volta de 140, pretendeu a sede episcopal. Idéias mais moderadas foram as de Bardesanes de Edessa (+ 222), que o parecer não foi partidário incondicional do dualismo.

De particular importância foram também, ao que parece, os setianos (que tomam o nome de Set, o filho "bom" de Adão, considerado como pai dos autênticos filhos de Deus). De seu círculo procede provavelmente a mencionada coleção de Nag'Hammadi.

A gnose foi uma degradação radical da intangível revelação religiosa de Jesus, fazendo dela uma filosofía, uma aguda helenização do cristianismo, uma falsificação de sua essência em suma. Seu grande êxito se deve: 1) a seu inegável conteúdo religioso, enormemente atraente sobre tudo para a fantasia humana; 2) a grandiosidade de sua imagem do mundo; 3) a sua tentativa de fazer do próprio pensamento do homem o elemento determinante da interpretação da realidade, ainda que dentro de uma revelação.

A declarada oposição entre cristianismo e gnose se faz particularmente aguda quando a hostilidade gnóstica contra a matéria desemboca em zelo exagerado e nas consequentes restrições rigoristas (recusa do matrimônio, do uso da carne e do vinho). Isto é precisamente o que encontramos em Taciano o Assírio, apologeta (§ 14) e fundador dos "encratitas" (= os rigorosos).

O enorme alcance deste fenômeno comumente chamado gnose se demonstra, desde um ponto de vista totalmente oposto, em Marcion.

Na gnose herética se exclui de ver de um modo desconcertante, e mais intensamente que em qualquer outra parte, a incrível vitalidade interna do paganismo durante os séculos II e III. Quantitativamente, os escritos heréticos cristãos-gnósticos superam aos escritos ortodoxos. Mas muitas coisas nelas são tão grosseiramente pagãs e contradizem tão claramente os atos e as doutrinas cristãs fundamentais que resulta difícil compreender que semelhantes idéias puderam fazer séria competência ao evangelho. Mas isto demonstra-o arraigadas que no solo pagão estavam então, através de mil e uma fibras, as idéias das pessoas cultas (das que aqui principalmente se trata). No sincretismo, principal suporte da gnose, como temos dito, sustentavam uma espécie de crescente epidemia espiritual. Seu instrumento literário-teológico consistia em uma exegese alegórica, fantástica, desenfreada, mal aplicada.

Daqui se compreende que a reação pagã do imperador Juliano (§ 22) não fora um fenômeno isolado, senão a última das muitas manifestações da vida pagã de grande estilo no âmbito religioso-espiritual e político do império.

4 . O sistema gnóstico mais cristão e ao mesmo tempo mais sério desde o ângulo religioso e moral, e no que mais fortemente se acusou o perigo que este movimento entranhava para a Igreja, foi a doutrina de Marcion. Seu próprio pai, bispo de Sinope, junto ao Mar Negro, o havia excomungado. Logo, primeiramente se refugiou (139) na comunidade de Roma, mas foi expulso dela em 144.

a) Marción não era somente um teólogo, senão também um político.
Havia compreendido que a pura interioridade, que uma doutrina verdadeira só para si mesma não tem suficiente efetividade: como todo valor que queira adquirir grandes proporções e Perdurar, a verdade e a mensagem cristã devem apresentarem-se em uma forma clara e eficiente; se tem de poder governar e administrar. Por isso Marcion fundou em Roma (em 146) sua própria Igreja. Apartir do século III adquiriu uma enorme difusão desde a Gália até o Eufrates: era uma Igreja com seus próprios bispos, sacerdotes, templos, liturgia e inclusive mártires. Unicamente desta forma pode a doutrina heterodoxa de Marcion constituir um sério perigo para a Igreja Católica Apostólica.

b) Marcion defendia o isolamento parcial das idéias específicamente paulinas, suprimindo todos aqueles elementos suspeitosos de recaída no judaísmo (no qual, segundo sua opinião, haviam caído todos os apóstolos, a exceção do "verdadeiro" Paulo e uma parte de Lucas). Fez que a aversão à lei chegasse até a contradição absoluta entre o Antigo e o Novo Testamento: há duas divindades, o Deus bom, que só sabe de amor e de misericórdia, a dizer, o Pai de Jesus, e o Deus mal, o Deus da criação, o Deus da fé judia. Para quebrantar o poder deste, o Deus bom enviou a Cristo em um corpo aparente para trazer-nos a salvação, a qual só se pode conseguir pela fé no enviado.

Para apoiar sua doutrina, Marcion confeccionou um Novo Testamento conforme a suas idéias básicas (tachou, por exemplo, o princípio do Evangelho de Lucas, a epístola aos Hebreus e as cartas pastorais).

5. Naqueles séculos, a impaciente busca da redenção, de purificação espiritual e de conhecimento profundo sempre constituiu no campo cristão uma intensa luta por expor a doutrina de Jesus Cristo em sua genuína pureza. Como Marcion, também Mani, fundador do maniqueísmo (crucificado em 276), acreditava que se havia perdido a verdadeira doutrina de Jesus. Se considerava enviado de Jesus Cristo (O Paráclito anunciado por este) para trazer-nos de novo, como última revelação de Deus, a esquecida verdade de Jesus.

No conjunto dos movimentos gnósticos talvez é este ponto o que apresenta maior perigo: o abuso do nome de Jesus e de sua mensagem, oferecido como interpretação mais profunda. Também isto é aplicável ao maniqueísmo, ainda que este, por mais, sustentar um rigoroso dualismo: a luz é a força do bem; toda matéria é mal. Por isso se prescreve a absoluta abstinência de todo o material (carne, vinho) e se condena o matrimônio.

O maniqueísmo tem tido um alcance mundial: havia seguidores seus desde a África até a China. Repercussões desta religiosidade oriental as encontramos todavia na Idade Média (§ 56, os cátaros).

6. O sistema de Marcion, apesar de seus princípios gnósticos-dualistas, era uma tentativa de salvar o cristianismo precisamente das redes ameaçantes desta gnose. Houve outra tentativa no campo da vida moral, empreendido por Montano (§ 17). Ambos fracassaram. A única oposição vitoriosa foi a da Igreja, diante de tudo por haver conservado com humildade e fidelidade a herança apostólica.

Os herejes ensinavam doutrinas em aberta contradição com a consciência geral da fé da Igreja. Também eles sabiam perfeitamente que para o cristianismo só podiam considerar-se como válidas, as verdades respaldadas pela pregação apostólica. Por isso, para garantir suas novas opiniões, invocavam uma oculta tradição apostólica. Junto com a já mencionada mutilação das Sagradas Escrituras, criaram uma rica literatura de novos evangelhos (apócrifos) 49, atos dos apóstolos, etc. Ademais, dado que os gnósticos, com seu desprezo pelo histórico, e com sua tendência à interiorização exagerada (espiritualização) e seu docetismo, ameaçavam com liquidar a vida histórica de Jesus, a tarefa dos adversários do gnosticismo estava já previamente traçada.
A impugnação científico-literária da gnose (por exemplo, por Tertuliano), apesar de sua grande importância, partiu sempre mais ou menos da iniciativa privada dos respectivos escritores, a não ser que foram precisamente bispos, como Irineu. Mais importante foi a refutação oficial da Igreja, duplamente importante e eficaz porque se verificou em forma de positiva confissão de fé. A peça mais essencial dela é para nós a concessão batismal oficial. A confissão romana mais antiga que conhecemos ( 125), que corresponde mais ou menos a nossa "confissão de fé apostólica," se opõe claramente a tentativa de volatilizar ou espiritualizar a pessoa e a vida de Jesus: reconhece a encarnação real de Deus na história, em Maria a Virgem, isto é, Jesus Cristo, que padeceu e foi crucificado em um tempo concreto e determinado, "sob Pôncio Pilatos."

Ao mesmo tempo se confessa a unidade de Deus criador e Pai de Jesus Cristo e a divindade de Jesus Cristo.

Todavia mais importante foi a fixação do cânon do Novo Testamento. Se o Antigo Testamento era o livro sagrado da comunidade primitiva, os escritos dos apóstolos e de seus discípulos imediatos (Marcos e Lucas), surgidos como escritos ocasionais, ganharam uma alta consideração geral nos lugares donde não se podia (e tão logo como não se podia) escutar a pregação dos apóstolos. As cartas de Paulo se intercambiavam nada mais a serem escritas (Col 4:16) e chegaram a serem colecionadas (cf. 2 Pe 3:15ss). Seu emprego no culto, por uma parte, e os recortes da revelação, por outra (Marcion e Montano), urgiam uma fixação, tanto mais quanto que outros escritos não autênticos (apócrifos) tratavam de conseguir autoridade valendo-se do nome dos apóstolos. Por diversas alusões sabemos que até o ano 200 o patrimônio neotestamentário estava substancialmente fixado (Fragmento Muratoriano de finais do século II). Certo que varia a ordem de sucessão, como também se citam alguns escritos não apostólicos da Igreja primitiva umas vezes como obrigatórios e outras como discutidos. Mas seu emprego na liturgia e seus primeiros comentários fizeram em seguida que se destacassem definitivamente os escritos inspirados. Deste modo, Atanásios em sua 39ª carta pascal (367), recolhe um índice de nossos vinte e sete livros do Novo Testamento 50. Um Sínodo de Roma confirma este cânon no ano 387, e a ele se aderem uns anos mais tarde os sínodos africanos de Hipona e de Cartago.

Nestes atos encontramos um caso típico de como se formavam os dogmas no princípio: a diversidade de opiniões no interior ou os ataques do exterior fazem necessária uma explicação; segue uma resposta imediata da parte das forças carismático-criadoras, porque o Espírito sopra aonde quer (Jo 3:8). A discussão posterior aclara a resposta, dando-o validade universal. Si se logra um verdadeiro consenso, quer dizer que o magistério dos bispos também a aprova e a resposta passa a formar parte da pregação ordinária. Se não se logra o consenso em importantes questões doutrinarias, então o magistério dos bispos, em comunhão com o bispo de Roma (às vezes atrás de um considerável lapso de tempo), aclara os termos do pensamento da Igreja, fixando-os assim definitivamente.

Dado que a formação do cânon é uma decisão doutrinal intra-eclesial, a apelação à Bíblia enquanto palavra de Deus posto por escrito implica em si mesma o reconhecimento tanto dos dons da graça como do ministério da Igreja primitiva, à que o Espírito Santo tem eleito como instrumentos de composição, seleção e tradição da Escritura. Se a gênese da Sagrada Escritura em sua forma atual não é compreensível sem a intervenção da Igreja, também sua compreensão correta brota da fé de toda a Igreja, ao qual, por outra parte, sempre requer um encontro pessoal com a palavra de Deus. Tanto nos evangelhos (S. Mateus, João) como na profissão de fé se dizia expressamente que a doutrina tinha que ser interpretada segundo os profetas e, em geral, segundo a Escritura; a mesma profissão de fé era a norma segundo a qual devia ser exposta a doutrina e, consequentemente, também interpretada a Escritura. A comunhão eucarística com os sucessores dos apóstolos constituía uma garantia especial da pureza da doutrina. Por isso se exigiu muito logo a conexão ininterrompida dos chefes com a pregação apostólica. A ortodoxia estava particularmente assegurada com a sucessão apostólica dos bispos.

Desde o momento em que a Igreja venceu a gnose, se fez impossível de uma vez para sempre a dissolução da religião cristã em uma filosofia. Foi uma solução decisiva para todos os tempos.
O trabalho dos impugnadores da gnose (Ireneu, Tertuliano, Hipólito) pode muito bem considerar-se neste resumo: ao dilema de "criação ou redenção," "conhecimento ou fé," opuseram a síntese de "criação e redenção," "fé e conhecimento."

48 Aqui se baseia a mencionada tripartição das classes de homens em gnósticos (o pneumáticos), psíquicos (písticos) e hílicos. Só os primeiros chegam à verdadeira bem-aventurança junto aos anjos. Os psíquicos alcançam o céu inferior. Os hílicos, imersos na matéria, serão vítimas do fogo, irão em uma ou outra forma à perdição.

49.A eles pertenece também o Evangelho de Tomé, cujo texto completo tem sido recentemente descoberto (cf. § 6).

50 Outros catálogos dos livros sagrados se encontram em Cirilo de Jerusalém (+ 386) e Gregório Nazianzeno (+ 390).

domingo, 17 de julho de 2011

Os Cânones Sagrados na Vida da Igreja.

Os Cânones Sagrados
na Vida da Igreja.

"Condições para a interpretação
dos Cânones sagrados"

Vlasios Io. Feidas, Catedrático da Universidade.

Tradução Presbítero Pedro

Os cânones sagrados constituem fontes fundamentais do Direito Canônico, pois proporcionam o testemunho mais autêntico tanto dos assuntos eclesiásticos que tem surgido através dos tempos como também do modo em que a Igreja tem feito frente aos mesmos. Sem embargo a valoração dos cânones como fontes do Direito Canônico pressupõe uma posição objetiva quanto à natureza humana e divina da Igreja e quanto ao caráter espiritual peculiar e à finalidade histórica concreta daqueles. É a dizer, procede distinguir suas condições históricas e seu conteúdo histórico material da consciência da Igreja expressada através dos mesmos para fazer frente aos assuntos que surjam em cada ocasião, à causa de evidentes mal entendidos do conteúdo da revelação em Cristo. Esta distinção é sumamente árdua, pois nos cânones a consciência da Igreja se expressa em uma conexão histórica e morfológica para a questão concreta ao que se enfrenta e para as condições vigentes em cada época. É compreensível que unicamente mediante um estudo histórico-canônico objetivo baseado no método histórico-genético é possível a distinção entre o conteúdo histórico dos cânones e a consciência da Igreja expressada através dos mesmos. No obstante para alcançar dito objetivo convém levar a cabo sua valoração particular frente às outras fontes da história da Igreja e ter em conta certas condições eclesiológicas básicas, sem as quais a correta interpretação dos cânones resulta impossível.

Do anterior resulta evidente que toda a tradição canônica da Igreja deve ser valorada mediante uma correta interpretação de cada grupo concreto de cânones, aos quais foram estabelecidos pelos Sínodos Ecumênicos ou Locais ou também como resultantes da autoridade dos distinguidos Pais da Igreja. Sem embargo a correta interpretação pressupõe também a recondução de cada cânon ou grupo de cânones do mesmo tipo à totalidade da experiência sacramental e espiritual global da Igreja, à qual se refere o conteúdo completo da tradição canônica. Sem dito esforço hermenêutico prévio, então os contrastes aparentes dos cânones se multiplicariam segundo os critérios objetivos ou motivos de turno dos canonistas, enquanto que o desuso oportuno ou inoportunamente alegado de certos cânones se ampliaria com o passar do tempo. Efetivamente, muitas vezes a letra dos cânones se põe por cima de seu espírito e cada cânon se valora isolado da tradição canônica global, é dizer independentemente do conteúdo da revelação em Cristo e da essência do sacramento da Igreja. Resulta pois evidente que a hermenêutica dos cânones deve ter sempre presentes certos princípios eclesiológicos e histórico-canônicos peculiares, sem os quais a interpretação inclusive dos cânones por separado corre o risco de resultar uma valoração parcial ou equivocada do espírito ou da vontade dos mesmos:
Primeiro, na interpretação e na valoração dos cânones se pressupõe, por suposto, a suficiente formação teológica e a opinião eclesiástica sã do estudioso. Em caso contrário resulta impossível uma correta aproximação aos textos canônicos, aos quais não constituem certamente só um simples objeto de estudo árido e horizontal. É compreensível que na interpretação de um cânon se persiga na medida do possível a abstração da subjetividade dos pressupostos e das intenções do estudioso, pois a posição a priori contraria ao cânon pode conduzir a conclusões errôneas. As premissas e as finalidades dos cânones tem sido já postas pela Igreja, de modo que é limitada a possibilidade de interpretação subjetiva por parte do estudioso. A qual significa que quem se dedique ao estudo dos cânones deve iniciar-se com anterioridade no espírito em geral da tradição canônica e respeitar todas as condições eclesiológicas e eclesiásticas imprescindíveis para sua interpretação.

Segundo, na interpretação dos cânones se deve ter em conta muito seriamente que estes não formam uma parte distinta, independente e auto suficiente das fontes da revelação, senão que estão incluídas orgânicamente na Tradição sagrada global da Igreja. Interpretam as Sagradas Escrituras e só são interpretados através destas e de sua referência à Tradição sagrada global da Igreja. Isto deve considerar-se como uma condição sem a qual não para a correta interpretação dos cânones, dado que toda a constituição de seu conteúdo por razão de matéria se baseia direta ou indiretamente nas Sagradas Escrituras e na Tradição sagrada. O fato pois que na formulação de qualquer disposição canônica se ponha como condição necessária à referência à totalidade do conteúdo da revelação em Cristo, do modo em que desta é depositária a Igreja e a vive continuamente, faz que ela não respeita a esta condição durante a interpretação dos cânones constitua uma inconsequência inaceitável e uma omissão perigosa. As consequências de tal omissão são muito graves não só para a correta valoração do espírito dos cânones, senão também para a plenitude do método hermenêutico seguido na interpretação, já que cortar os cânones do conteúdo da revelação em Cristo elimina de fato as condições objetivas histórico-filológicas de descoberta do espírito que rege os mesmos. A eventual separação da forma histórica dos cânones do conteúdo subjetivo genuíno da revelação em Cristo se identifica com a eliminação dos fundamentos de toda a tradição canônica e com sua descomposição em formas históricas parciais indiferentes para a história da salvação, as quais deixam de estarem relacionadas com a natureza ou com a finalidade da Igreja.

Terceiro, para a correta compreensão ou interpretação dos cânones se deve produzir uma clara distinção a priori entre a envoltura histórica e o espírito da tradição canônica que de algum modo se inclui neles. A interpretação dos cânones não se pode assumir com o significado de um empirismo jurídico autônomo, é dizer, com o significado de uma investigação única da formulação que se expressa ou da finalidade concreta perseguida. Ao contrário, então existe realmente o perigo ou de uma totalização da letra da tradição canônica ou da limitação de seu espírito a uma composição aditiva dos supostos especiais referidos expressamente, nos quais a Igreja aplicou na prática a plenitude da verdade da fé vivida por ela. Não obstante a eventual totalização do material histórico da tradição canônica significaria ao mesmo tempo também a utilização da parte para a substituição do todo da experiência espiritual, a qual constitui a "lei" empírica suprema da igreja. Por conseguinte, a correta interpretação dos cânones pressupõe necessariamente por uma parte o restabelecimento da autêntica relação vertical do espírito dos mesmos pelo conteúdo da revelação em Cristo, e por outra parte a incorporação horizontal natural e objetiva de sua envoltura histórica na experiência eclesiástica de cada época.

Quarto, a interpretação dos cânones deve realizar-se baseando-se em todos os princípios científicos modernos estabelecidos da hermenêutica. Não é suficiente portanto uma simples interpretação literal, senão que se devem encontrar uma sequente investigação laboriosa todas as causas históricas e a finalidade concreta dos cânones concretos, as particulares tendências canônicas durante a época em questão, a situação eclesiástica geral, a importância dos assuntos aos que se referem aos cânones, sua relação com problemas eclesiásticos paralelos, a terminologia utilizada na época em questão, a autoridade dos órgãos eclesiásticos que decretaram os cânones, o procedimento seguido, as discussões que se levaram a cabo durante o mesmo, os fundamentos eclesiásticos esgrimidos durante o estabelecimento dos cânones etc... Unicamente depois de um estudo responsável e exaustivo similar das condições eclesiológicas e histórico-canônicas do texto dos cânones, para restabelecer o autêntico texto, para delimitar-se de modo exato o significado canônico dos termos utilizados, para esclarecer-se a finalidade específica do estabelecimento de cada cânon e interpretar por conseguinte sua autêntica vontade.

Quinto, na interpretação dos cânones devem evitar-se os habituais paralelismos analógicos errôneos, esquivar as correlações subjetivas ou inoportunas, fugir de quantas imprecisões favoreçam falsas interpretações, esclarecer-se ou corrigir-se qualquer tipo de indeterminação de termo ou formulação, assinalar-se as eventuais falsificações intencionadas no passado do texto, acolher todas as interpretações errôneas propostas e examinar-se todas as possibilidades de correta interpretação do texto. Na interpretação deve determinar-se claramente que disse e que não disse na realidade o cânon sobre a época em que foi estabelecido, encontrar a peculiaridade ou a novidade e constatar seu acordo ou sua evolução em comparação com textos canônicos análogos ou similares anteriores ou contemporâneos ao mesmo. Finalmente, o espírito e a vontade de cada cânon deve formular-se positivamente e não mediante uma interpretação estrita ou literal do mesmo, já que só deste modo se facilita a correta recondução do espírito do cânon ao conteúdo total da revelação em Cristo.

Sexto, a multiformidade de expressões da tradição canônica que habitualmente se constata durante a interpretação dos cânones não deve ser fonte de problemas para o investigador, pois cada cânon concreto não constitui tampouco a única aplicação autêntica do conteúdo da revelação em Cristo na vida histórica da Igreja. É portanto possível que existam muitas fórmulas canônicas paralelas referentes ao mesmo assunto ou a assuntos similares, aos quais sem embargo não danam a autenticidade da aplicação histórica dada ao cânon concreto. Os cânones não excluem uma multiformidade histórica da autêntica expressão da mensagem da salvação em Cristo, enquanto que excluem contrastes substanciais nesta multiformidade. A multiformidade sem contrastes substanciais é habitual na tradição canônica.

Sétimo, na interpretação dos cânones, e sobre tudo dos da mesma classe, se deve distinguir claramente aqueles cânones, que condenam alguma infração canônica durante sua perpetração (heresia, cisma, seita, reunião secreta, doutrina moral equivocada), daqueles outros aos quais têm como objetivo a definição dos assuntos canônicos para o regresso dos arrependidos ao seio da Igreja. Aos primeiros geralmente se aplicam a exatidão canônica, embora geralmente imponham penas mais severas contra os que atentam à unidade da Igreja. Não obstante, aos arrependidos se aplica sempre a ação eclesiástica tanto para o fortalecimento da unidade, como para a salvação dos arrependidos através dos meios de santificação da Igreja. Neste sentido, a exatidão canônica expressa a natureza absoluta e a essência do mistério da Igreja, e a obra eclesiástica constitui uma aplicação pastoral especial do mistério da Igreja em cada um dos supostos.
Oitavo, a correta recondução dos cânones em parte similares ou afins a seu conjunto orgânico implica, em última análise, sua referência à experiência sacramental global da Igreja, pois segundo a tradição ortodoxa "a Igreja se revela nos sacramentos" (St. Nicolau Kavasilas). Neste sentido, poderia sustentar-se firmemente que quantos cânones se referem p.ex. à organização administrativa da Igreja tanto local como universal decorrentes do sacramento do sacerdócio, por ele todos se referem à possessão canônica, ao exercício ou a perca da autoridade sacerdotal dos bispos, presbíteros e diáconos, também funcionam tendo como ex. o sacramento da Divina Eucaristia, na qual se resume toda a experiência sacramental e se revela o mistério completo da Igreja.

Nono, na realidade o Direito Administrativo da Igreja fixa a distribuição canônica durante as épocas do direito das ordenações e do juízo dos bispos, como também a função do resto dos clérigos, os monges e os leigos, de modo que se afirma continuamente a unidade do corpo eclesiástico na Divina Eucaristia e em toda a experiência sacramental da Igreja. No mesmo marco funciona também o Direito Penal da Igreja, a qual, através da grande variedade das penas espirituais, determina simplesmente a relação canônica dos bispos, do resto dos clérigos, os monges e os leigos para a Divina Eucaristia e toda a experiência sacramental da Igreja. O que os cânones administrativos e penais estão centrados na Eucaristia faz necessária a recondução hermenêutica tanto do conteúdo como da terminologia ambígua (ordenação, excomunhão, comunhão) dos relativos cânones aos seus ditos princípios fundamentais de sua existência e seu funcionamento. Deste modo se evitam não só as distinções errôneas habituais na doutrina jurídica acerca do caráter dos cânones (administrativos, dogmáticos), senão também as interpretações arbitrárias ou impróprias dos termos canônicos ambíguos, como p.ex. dos termos ordenação (eleger — celebrar ordenação), excomunhão (excomunhão maior ou menor), entredito (penitência — pena) etc. Com este método hermenêutico de recondução aos princípios fundamentais cai a salvo a autêntica vontade de cada cânon concreto não só segundo sua formulação histórica senão também em sua referência espiritual a todo o funcionamento do corpo eclesiástico.

A interpretação dos cânones portanto só se logrará se, observados os supracitados princípios hermenêuticos, resulta possível dar a mensagem completa à terminologia e língua contemporâneas. Isto é uma tarefa árdua e habitualmente insegura, pois não existem sempre questões razoáveis tanto acerca da autêntica relação entre cânon e interpretação como acerca da completa identidade do espírito de ambos. Sem embargo a fidelidade do espírito da interpretação faz o autêntico espírito dos cânones e precisamente também a petição de qualquer nova formulação canônica. Certamente, a fixação na forma histórica ou na agrupação por matérias dos cânones é um pressuposto necessário, mas não um elemento necessário da interpretação, ainda que na interpretação haja que buscar a autêntica analogia de todos os dados históricos contemporâneos aos cânones, respeito dos quais estava vigente o espírito e o conteúdo destes.

Sem embargo, a dificuldade objetiva por uma parte para assegurar a completa identidade entre o espírito do cânon e o espírito de sua interpretação, e por outra parte para preservar a autenticidade do espírito em troca da letra explica a atitude estrita da Igreja Ortodoxa frente aos cânones, a qual, sem dar certamente carácter absoluto ao seu teor literal histórico, os considera autênticos e portadores certos de seu espírito subjetivo. Assim, se conserva intacta com uma sensibilidade característica a autêntica conjunção histórica de letra e espírito, não só para manter sem adulterar através dos mesmos a mensagem da revelação em Cristo, senão também para fundamentar sua nova aplicação autêntica em cada época e em formas históricas familiares aos fiéis. O respeito da Ortodoxia a conjunção histórica da letra e o espírito dos cânones deve se interpretar certamente não como uma doentia síndrome tradicionalista de sua evolução histórica, senão principalmente como uma sã sensibilidade incontestável para a salvaguarda de sua fonte fidedigna e de seu dinamismo renovador em todas as épocas da história da Igreja.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

15. Teologia e Heresia.

15. Teologia e Heresia.

I. Forças Básicas da Teologia.

1. Quando Paulo, no Areópago, teve que anunciar a boa nova a pessoas filosoficamente formadas (Atos 17), recorreu a conceitos e expressões familiares aos ouvintes: para a pregação da mensagem religiosa da revelação empregou conceitos 42 "filosóficos" ("Deus desconhecido"; "busca de Deus"; "nele vivemos, nos movemos e somos").
Aqui, na inteligência e fundamentação da revelação através da razão natural, reside o problema da teologia científica em geral, o problema de âmbito cultural grego, o problema da razão e da fé.
a) É o problema que sempre se projeta quando a verdade revelada se aproxima de homens espiritualmente autônomos. A razão, habituada a determinadas categorias, tratará por imperiosidade interna depor em relação às novas verdades com seu pensamento natural e de conciliá-las de algum modo; tratará de "compreender" científicamente a revelação.
b) Mas enquanto aparece este problema, surge também um perigo: o que se pode chamar racionalismo no sentido latus (geral). É dizer, nas tentativas de resolver dito problema facilmente se abriga a secreta esperança de poder traduzir a puros conceitos as verdades reveladas.
c) Por outra parte, sempre tem havido teólogos que não tem experimentado tão forte a necessidade de compreender a fé científicamente, que, em troca, tem tido um acusado sentido da tradição; neles tem incentivado sobre tudo a ânsia de conservar a tradição tal como a haviam recebido. Os homens desta classe tem desempenhado um papel muito importante na história da Igreja como custódios do depósito da revelação. Por isso a Igreja romana, apartir de Calixto, se tem preocupado mais em afirmar o monoteísmo absoluto por uma parte e a absoluta divindade e humanidade de Jesus por outra que de encontrar fórmulas capazes de esclarecer a conciliação de ambos elementos (cf. §§ 26 e 27). Quando esta tendência chegou a acentuar-se excessivamente, até ao extremo não só de sublinhar a incomparabilidade do anúncio de fé, senão inclusive de duvidar da capacidade da razão para ilustrar de algum modo a revelação, se planteou um segundo perigo: o fideísmo (§ 25).

2. A Igreja não podia aceitar nenhuma destas duas soluções extremas. O racionalismo, que em última instância, significava renunciar à revelação; aceitá-lo haveria equivaler a um suicídio. Por sua parte, o fideísmo haveria significado uma insuportável restrição; aparte de que no curso da história eclesiástica se tem convertido pelo regular no pior dos racionalismos. Também aqui a Igreja tem permanecido fiel a seu intrínseco universalismo (sistema do justo meio). Com ele tem dado base à teologia. A evolução dos dogmas, assombrosamente retilínea sempre, é tanto mais surpreendente (e inclusive sinal de uma direção divina) quanto que os guias mais competentes e santos da Igreja nem sempre tem sustentado respeito a um problema concreto a tese que ao final haveria de triunfar ou não se tem dado perfeita conta de seu alcance. Por exemplo, o grande Dionísio de Alexandria (+ 264), discípulo e sucessor de Orígenes, não se deu conta do alcance da disputa sobre o batismo dos hereges, e por isso se inclinou à tolerância. Cipriano, a diferencia de Roma, seguiu seus próprios caminhos. Os conceitos de Agostinho sobre a graça, a vontade e a predestinação não se podem reduzir integramente a um comum denominador. Por alguns conceitos como o da predestinação, a ortodoxia acusa a teologia de Santo Agostinho de ser o caldo de cultivo das teorias luteranas e sobre tudo das calvinistas. Respeito ao consensus patrorum (concordância doutrinal dos Pais da Igreja), que é tão difícil —por não dizer impossível— de constatar, há que ter presente a diversidade de cada uma das personalidades e escolas e suas mútuas divergências.
Em certo sentido, desta evolução se pode deduzir inclusive a importância positiva do erro na história.

3. O problema da teologia teve que fazer-se sentir mais fortemente à medida que o cristianismo se difundia pelo mundo de cultura helenística. O século II foi sua primeira época, mas não a clássica. Nos apresenta tanto a resposta católica como outras soluções discordantes. Nos séculos seguintes foram principalmente os gregos os primeiros que empreenderam a dogmatização das verdades de fé, é dizer, prepararam, asseguraram e desenvolveram o resultado dos concílios. Todos os concílios da Igreja antiga se celebraram em solo grego, com participação predominante de bispos e teólogos gregos. Mais tarde toda essa herança grega a recolheu Roma. A Igreja ortodoxa do Oriente, depois do VII Concílio Ecumênico (787), já não tem formulado mais dogmas. Mas tem que adicionar que, dado seu fechado carácter, tampouco os tem necessitado propriamente. No interior da Igreja ortodoxa grega a liturgia passou a ocupar, por assim dizer, o lugar da teologia, não só enquanto que grande parte da vida religiosa estava determinada por ela, senão que também a confissão da verdade se expressava preferentemente na forma litúrgica, a dizer, na adoração e louvor.

4. Os apologetas se ocuparam de dar uma resposta plenamente cristã 43. Seu labor de fundamentação se completou primeiramente naquele âmbito cultural onde a cultura grega se havia configurado e afiançado mais fortemente: em Alexandria. Aqui, na cidade de Filón, com suas famosas escolas, se fez sentir com maior intensidade a exigência de restabelecer a unidade entre a cultura espiritual recebida e a religião cristã revelada. Grandes grupos de membros da Igreja desejavam uma instrução religiosa que correspondesse às exigências de uma cultura superior. Por isso, precisamente aqui, em Alexandria, cujo bispo, após a destruição de Jerusalém, assumia nos primeiros séculos cristãos o segundo posto entre os patriarcas da Igreja, surgiu a primeira "escola superior" de religião, a primeira escola catequética. Seu primeiro mestre conhecido foi Panteno (+ 200).

5. Dos homens, o segundo e o terceiro diretor desta escola, nos mostram melhor que ninguém o espírito que ali reinava e os problemas que se planteavam e tratavam de solucionar: Clemente de Alexandria (+ 215) e Orígenes (+ 253-254).
a) Clemente, discípulo de Panteno, dirigiu a escola muito pouco tempo (aprox. desde 200). Mas em 202-203 fugiu para a Ásia Menor diante da perseguição de Septimio Severo. Com sua vasta erudição clássica e santo entusiasmo chegou a alcançar a plenitude da verdade cristã e a anunciou em uma linguagem enormemente poética. Viu claramente pela primeira vez (cf. Justino, § 14:4) a íntima harmonia de tudo quanto há de verdadeiro no mundo, e como também o paganismo, parcialmente ao menos, havia evoluído em direção a Cristo. Defendeu uma gnose ortodoxa e no essencial evitou o perigo de uma redução da revelação à filosofia. Não nos consta que fora sacerdote.
b) Clemente foi superado pelo homem mais douto da Igreja oriental, Orígenes. Nasceu provavelmente por volta de185 em Alexandria, donde o bispo Demetrios o nomeou aos seus dezoito anos, sendo ainda secular, sucessor de Clemente na direção da escola catequética. Ele combinou sua própria actividade docente com a assistência às lições do famoso neoplatônico Ammonio Sacas. Quando os ataques massivos dos pagãos obrigaram-no a fechar a escola, Orígenes marchou a Jerusalém e a Cesaréia. Alí pregou ele, secular, com aprovação (ou por convite) dos bispos locais. Mais tarde esteve também em Roma com o papa Zeferino, e logo com o antipapa Hipólito.
Em 230, durante uma viagem à Grécia, foi ordenado sacerdote em Cesaréia na Palestina por uns bispos amigos, apesar de sua automutilação, mais exatamente castração,(as Regras Apostólicas proíbem ordenar sacerdotes a pessoas que haveriam cometido dito crime, se bem que permite aos eunucos " se são dignos" de exercer o ministério. As Regras Apostólicas anteriores ao V Concílio -e também posteriores- incisos 21 e 22 dizem a respeito: "21. Um eunuco convertido em tal por influência dos homens, ou privado de sua virilidade pela perseguição, ou nascido em dito estado pode, se é digno dele (das ordens sacerdotais), converter-se em bispo" e "22. Se alguém se tem automutilado, não se converterá em clérigo, já que seria assassino de si mesmo, e inimigo da criação divina") levada a fim mais de vinte e cinco anos atrás por uma falsa interpretação de Mt 19:12. O bispo de sua cidade, que não havia sido consultado para a ordenação, apesar da intervenção de diversos bispos em seu favor, o excluiu do estado sacerdotal e da Igreja, medida grave e pouco inteligente, logo confirmada pelo papa. Assim, pois, Orígenes voltou outra vez a Cesaréia em 231, donde abriu sua própria escola de catequese, entre cujos discípulos figurou Gregório o Taumaturgo.
A erudição de Orígenes, como sua aplicação, supera todo o imaginável. A sua enorme capacidade de trabalho correspondia uma igualmente grande fecundidade literária. Não só comentou quase toda a Sagrada Escritura desde diversos pontos de vista; também foi pioneiro na reconstrução filológica exata do texto dos Livros Sagrados (= do Antigo Testamento), colocando o texto hebreu (em língua hebréia e em sua transcrição grega), mais quatro traduções gregas já existentes, em seis colunas (= Hexapla) uma junto a outra. Foi também o primeiro que redigiu uma dogmática geral e científica do cristianismo, ainda que orientada no sentido apologético, em uma espécie de manual das principais doutrinas cristãs (Peri Archon = De Principiis). Na biblioteca de Cesaréia se conservaram suas obras póstumas; de todas elas se serviu Eusébio para sua História da Igreja.
c) Se bem que para seu predecessor Clemente a revelação geral polarizava talvez excessivamente a atenção (em razão da afinidade do homem natural com Deus), Orígenes, em troca, a mudou decididamente do centro e cria uma nova e original "filosofia" cristã. Em alguns pontos de sua poderosa construção especulativa não logrou estabelecer a correta relação entre a fé cristã e a filosofia grega. Às vezes o elemento filosófico grego adquire excessivo alívio, em prejuízo do elemento religioso cristão. Isto se verifica de ver em particular em sua doutrina da eternidade do mundo, das almas como espíritos caídos e em sua opinião de que ao final dos tempos tudo, inclusive os condenados, retornarão a Deus (apokatástasis). Estas idéias foram posteriormente condenadas por distintos concílios.
Mas é certo que Orígenes jamais quis sustentar uma doutrina contrária à consciência de fé da Igreja. Foi uma personalidade respeitosa e verdadeiramente cristã, que foi considerada suspeita pelas autoridades eclesiásticas de Alexandria, mas de um modo parcialista e vergonhoso para elas mesmas. Esta crítica levou mais tarde a um imerecido descrédito da obra literária daquele grande homem, de modo que a incomensurável plenitude de seu pensamento não tem sido, por desgraça, tão fecunda para a Igreja como houvera sido de desejar. Morreu com a idade de setenta anos por consequência das torturas que havia padecido por sua fé sob a perseguição de Décio. Depois de seu "martírio" recebeu do bispo de sua cidade, por seu antigo discípulo Dionísio, a carta de reconciliação.
d) Do exemplo de Orígenes se pode deduzir claramente que a mensagem cristã todavia não havia alcançado então uma fixação teórica plenamente unitária. É notória a diversa valoração de sua ortodoxia por parte dos bispos; tampouco consta necessariamente que o juízo de seus adversários deve ser predominante em tudo. Certamente, é ele um dos grandes pioneiros da entrada espiritual do cristianismo no ecumene. Com sua doutrina favoreceu à difusão do reino de Deus, com sua fortaleza de fé e de espírito opôs uma resistência vitoriosa à heresia declarada e em muitas Igrejas cobriu as dificuldades doutrinais.
Seu ardente amor a Cristo e à Igreja está fora de toda dúvida.
Também Orígenes, com o poder de sua ciência, incrementou consideravelmente o prestígio social do cristianismo. Julia Mammea, mãe do imperador Alexandre Severo, o fez vir à Antioquia e ali escutou suas conferências. Pode dizer-se que sua escola foi visitada por todo o mundo culto.
Orígenes é um expoente da síntese entre cultura e fé, cultura e vida sobrenatural, teologia e consciência de fé da Igreja.
Com ele pode dizer-se que na história do cristianismo aparece pela primeira vez um mérito próprio da ciência: o interesse de compreender objetivamente a ideologia do contrário. "Aprendeu de todos aqueles a quem combateu; todos seus adversários foram também seus precursores" (Harnack). Em uma palavra: sabia escutar com humildade e com fé.

6. No século III surgiu também outra escola teológico-cristã em Antioquia, tão célebre como Alexandria por suas boas instituições docentes pagãs. Esta escola foi especialmente relevante para o desenvolvimento da vida da Igreja e da teologia. Em certo modo fazia a competência à Alexandria; sua oposição em concreto residia em sua metodologia científica, oposição que se manteve desperta e cresceu constantemente graças às discussões eclesiásticas entre os dois patriarcados de Alexandria e de Antioquia.
Em Alexandria se preferia a exegese da Sagrada Escritura ou método alegórico-místico; a escola de Antioquia era mais sóbria e trabalhava mais conforme o método crítico-histórico e gramático-lógico. Um de seus fundadores foi o sacerdote antioqueno Luciano 44 (+ como mártir em 311-312), mestre de Arrio, quem a partir dos sessenta anos ensinou em Antioquia (§ 26). Mas o período de esplendor da escola se iniciou com Diodoro de Tarso (+ 349). Sua influência repercutiu também na escola de Edessa, cujo mestre mais famoso foi logo Efrém da Síria (+ 373), de grande relevância teológica.

II. O Problema da Heresia.

1. Toda a tradição cristã está firmemente convencida de que só "a Igreja" tem o poder e o dever de ensinar as verdades de fé.
O desvio da verdade eclesiástica comum é heresia.
a) Há heresias que concernem diretamente à vida religiosa, isto é, à vida ético-religiosa (por exemplo, os montanistas, § 17), ainda que também implicam (necessariamente) equivocadas concepções doutrinais.
Aquí, neste contexto, nos ocupamos daqueles tipos de heresia que diretamente se relacionam com a doutrina e, consequentemente, com a teologia, enquanto são uma tentativa de "compreender" o conteúdo da revelação por meio da razão natural.
b) O Senhor havia anunciado que no reino de Deus o joio haveria de crescer junto com o trigo até o último dia da colheita; e, segundo as palavras de Paulo (1Cor 11:19), teria que haver divisões (heresias). De fato, a história inteira da Igreja de Deus está sulcada de heresias, sempre novas e condenadas pela Igreja.
c) Para compreender a história eclesiástica e extrair dela uma valoração científica da Igreja e sua doutrina é absolutamente necessário por em claro primeiro a essência e a origem da heresia. O que se ventila é o problema central da unidade ou não unidade da Igreja sob a forma particular da formulação teológica. Se isto não está claro desde o princípio, a exposição da história da Igreja corre o perigo de diluir-se em uma desordem inconexa das mais variadas e até contraditórias proclamações e explicações da doutrina de Jesus. A história da Igreja se desintegraria na história dos fenômenos cristãos. O conceito da única verdade cristã se veria basicamente ameaçado. E com ele a idéia e a realidade da Igreja. Assim as coisas, devemos determo-nos um pouco mais em umas considerações previas imprescindíveis.

2. Heresia, segundo sua etimologia grega, é uma eleição unilateral. A teologia ortodoxa sob a direção da Igreja a) põe de alívio em primeiro lugar o artigo de fé revelado, isto é, a norma inteira da fé, esta disposta a acolher a plenitude da revelação e medido todos os resultados do próprio conhecimento segundo sua consciência de fé (é diante de tudo "ouvinte" e "confessor" da fé, antes de explicá-la); e b) se cuida intensamente de dar razão proporcionada de todas as verdades de fé. Na heresia, pelo contrário, esta postura é deslocada de dois modos: a) o desejo de explicação, isto é, o próprio juízo humano prevalece sobre a fé objetiva pregada pela Igreja e sobre a postura de ouvinte; um se pergunta primeiro (às vezes inconscientemente) que possibilidades há diante de escutar a revelação: atitude subjetiva em lugar de objetiva; b) de todo o conjunto da revelação se faz uma seleção: em lugar de síntese católica, unilateralidade herética. A essência da heresia é subjetivismo e a unilateralidade. (A seleção e o deslocamento nem sempre tem lugar pela via da reflexão; a pouco também concorrem influências falseadas de antigos conceitos religiosos ou morais transmitidos ou recebidos. Este foi em parte o caso, por exemplo, das heresias religiosas dos séculos I e II [judaísmo, gnose judaizante, milenaristas], o que apareceu como um perigo para a pureza do cristianismo entre os germânicos [cf. § 341]).
Uma rápida viajem através das heresias de todos os séculos prova eloquentemente quanto se tem dito. Sempre, para em nosso tempo, a investigação filosófica subjetiva da "essência do cristianismo" tem levado à unilateralidade herética, é dizer, para um ponto donde não existia a consciência viva de que esta essência não consiste precisamente em uma ou em outra parte da mensagem, senão em uma e na outra, em ambos como, ou seja, na plenitude; ou também não alentava a idéia de que só o organismo vivo da "Igreja" pode conservar integramente e expor retamente essa plenitude, que, a sua vez, também é algo vivo em sí mesma. Tal recorrido através da história mostra a Igreja, também neste assunto, como sistema do centro, da síntese, guardiã de todo o tesouro da revelação.

3. A síntese, não obstante, implica também tensão e oposição, e por isso muitas vezes resulta difícilmente na verificação científica em abstrato da íntima harmonia dos diversos elementos doutrinais; contudo, a dificuldade de unir dois pólos opostos jamais tem autorizado a negar a existência de um ou do outro. Tensão e oposição não significam contradição, senão que formam parte da plenitude, é dizer, de uma fecunda harmonia. De fato, a refutação contra os hereges se tem levado de tal modo que os tem demonstrado que eles não acreditavam em que a maioria, ou que a tradição, senão que mais bem anunciavam algo novo, que estavam sós.
Por outra parte, o homem não deve excluir do serviço divino a razão criada por Deus. Pelo mesmo, à sua vez, a condenação de uma heresia não comporta a condenação da crítica, como tampouco da teologia científica.
Com ambas exigências, a da plenitude e a da crítica, há de estar ligada à verdadeira exposição da história da Igreja. Por isso, identificar —como tantas vezes se tem feito— por princípio a heresia com a maldade (e em especial com o orgulho) não é mais que um prejuízo. A unilateralidade das heresias radica não poucas vezes na ardente vontade de buscar pessoalmente a verdade salvífica correta. E as mais das vezes também depende das idéias básicas filosóficas ou teológicas recebidas. Heresias surgidas deste modo recorrem à história inteira da Igreja em tal número que não é possível explicar-se satisfatoriamente sua função na história de não recorrer, também neste caso, ao conceito da felix culpa. A realidade das heresias se evidência a si mesmo à limitação do poder cognoscitivo do homem. Agustinho e Jerônimo o tem declarado de diversos modos: "Ninguém pode construir uma heresia a não ser que esteja dotado de ardente zelo e dons naturais. Desta espécie foram tanto Valentino como Marción, de cuja grande erudição nos falam as fontes" (Jerônimo). Para a postura de Agustínho frente aos donatistas, veja § 29.
Uma realidade tão oprimente como ilustrativa da complexidade das forças em jogo é o fato de que os esforços científicos em torno da doutrina da Igreja (seja para defendê-la, seja para expô-la positivamente) nunca tem acertado com a doutrina íntegra e pura em um tanto por cento mais ou menos elevado.
Isto é especialmente chamativo nos primeiros tempos, antes de Constantino e do primeiro concílio. Não houve então nenhum teólogo que de uma ou outra forma não imaginara a Cristo como essencialmente subordinado ao Pai (Justino, Hipólito, Novaciano, Tertuliano). Inclusive a idéia de Deus se expressava de ordinário muito confusamente, dada a grande influência (Justino) das idéias estóicas (e neoplatônicas). Também havia representantes do quiliasmo e idéias equivocadas sobre o Espírito Santo (Hipólito) ou sobre o batismo dos hereges.
Todas estas coisas, sem embargo, não levaram a Igreja de então a expulsar sensivelmente a estes escritores; a alguns deles os venera inclusive como santos. Isto responde ao fato de que defensores de doutrinas não ortodoxas ou antipapas, como Hipólito e Novaciano, suportaram valentemente por Cristo as perseguições e o desterro. Todos eles nos ajudam a explicar com a necessária amplitude de espírito o fenômeno da "heresia." A Igreja, por assim dizer, tem deixado crescer o joio até chegar ao tempo da claridade total e, com ele, também da sanção; tinha tempo e se o tomou, enquanto não cabia dúvida alguma do fervor religioso de uma genuína postura de fé. Assim, com feitos e não com palavras, tem chamado expressamente a atenção sobre a diferença entre fé e formula de fé, é dizer, entre a fé e sua formulação teológica ou teoria da fé. Já então alguns se deram conta do problema e muitas vezes adicionados a suas explicações, como Tertuliano, por exemplo, a observação de que deviam ser interpretadas unicamente no sentido da fé geral da Igreja.

4. Não obstante a importância destes pontos de vista, o problema teológico da história da Igreja a este respeito não está resolvido. A base para uma valoração definitiva das divisões é mais bem esta: por vontade do único Senhor não deve haver mais que uma Igreja e uma doutrina. Conforme as suas palavras sobre um único pastor e um só rebanho é de acordo com a oração sacerdotal (Jo 17:21ss: ut omnes unum sint), as separações estão em radical contradição com sua vontade. Assim, ainda naqueles que se tem separado, se tem mantido sempre vivo até tempos recentes, pelo menos em teoria, o pensamento de uma doutrina e uma Igreja. De fato, em visão de conjunto, até o século XI não tem existido mais que uma Igreja Universal. O problema de uma separação duradoura se dá a partir do cisma entre a Igreja oriental e ocidental no ano 1054 (§ 54) e o de uma separação da fé a partir do século XVI.
A questão fundamental, que permite adotar uma postura científica, é a da continuidade e sucessão apostólica. Que até o século XI estava resolvida claramente a favor da Igreja católica 45 era também opinião dos reformadores. O fato de que esta unidade na Antigüidade e na Idade Média estivesse muitas vezes protegida pela intervenção do poder estatal cristão não é uma objeção legítima mais que desde um ponto de vista moderno-espiritualista, mas não desde o ponto de vista do evangelho.

5. Antes do século XI, sem embargo, também houve fatos que de tal modo afetaram a unidade da Igreja em sua aparência concreta, que teremos que estudá-las mais cuidadosamente. A parte da já mencionada falta de claridade doutrinal dos mestres católicos do período pré-niceno e épocas posteriores, não há que subestimar nem a força nem a duração dos cismas e das Igrejas cismáticas que ensinavam doutrinas heréticas.
Nos tempos primitivos, ou seja, até o fim dos tempos apostólicos, a evolução está clara: apesar das divergências doutrinais e certos partidarismos (eu sou de Paulo, eu de Apolo, 1Cor 3:4), não só prevalece a consciência da unidade de todas as comunidades em uma Igreja, senão que os cristãos verdadeiramente viviam essa unidade. Esta unidade se fez problemática quando uma comunidade isolada ou mais amplas circunscrições eclesiásticas com seus bispos se creram, em virtude de certos méritos espirituais e religiosos, ou também econômicos e políticos, não dever de reclamar uma posição especial com direitos próprios.
O bispo particularmente, ante sua consciência e a consciência de seus fiéis, era antes de tudo o bispo desta única Igreja, estava em seu próprio direito frente às outras Igrejas. Também era natural que se formassem grupos. Nas disputas trinitárias e cristológicas e nos correspondentes concílios encontramos a estes grupos como forças que tomam parte decisiva nas definições doutrinais. Houve autênticas competições. Alexandria e Antioquia se convertem pela sua disposição espiritual em centros de poder. Desde o ponto de vista político, este se acusa da forma mais evidente em Constantinopla (cf. a este respeito as diversas consequências das controvérsias trinitárias e em especial as cristológicas).
O mesmo problema se adverte, ainda que na outra forma, nas lutas das heresias ocidentais do norte da África: a questão do batismo dos hereges, o pelagianismo, o donatismo e, anteriormente, a festa da Páscoa. Também o mesmo problema se apresenta, ainda que com distinta orientação, em geral desconexão das Igrejas particulares que provocou a migração dos povos, o que mais claramente se verá no posterior processo de cristalização do reino dos francos até a unidade do Ocidente cristão com a Igreja latina.

6. Muitas daquelas correntes não ortodoxas ou não completamente ortodoxas sucumbiram relativamente logo, ainda que durante certo tempo e em determinadas regiões causassem grande confusão e juntassem graves perdas, como, por exemplo, os donatistas (§ 29).
Também ao lado de tudo isto há outra série de fatos não menos sérios e inquietantes. Na Antigüidade, junto a "grande Igreja" universal, houve rupturas de Igrejas heréticas autônomas tão importantes e duradouras que houveram de condicionar profundamente o quadro da expansão da Igreja. A difusão dos partidários de Marción e de Mani foi tão grande que bem se pode falar de movimentos universais.
O fenômeno chegou a constituir um gravíssimo problema, no sentido propriamente teológico e teológico-eclesiástico, não donde se tratou de uma formação mais ou menos pagã (sincretista), senão donde se tratou de Igrejas cristãs heréticas, fora da ortodoxia, de grande extensão e duração. Neste sentido é impressionante a história do nestorianismo e sua condenação em Éfeso. E sobre tudo no que respeita à Igreja nestoriana da Pérsia. Prescindindo de sua irradiação no norte da África, muito importante para a evolução de Mohamed, a dizer, para os elementos cristãos que recolheram, o nestorianismo teve uma profunda infiltração em todas as províncias da China 46; teve, ademais, grande influência sobre os árabes, que conquistaram a Pérsia, e sobre os mongóis, que se apoderaram da Pérsia depois dos árabes, no ano 1258. Às vezes pareceu como se todo o Oriente pagão se houvera convertido na Igreja nestoriana. O mesmo pode dizer-se do poderoso e persistente monofisismo (§ 27).
Se incluíssemos em nosso exame toda a série de heresias e cismas menores dos primeiros tempos do cristianismo, tal como se nos conta nos Atos dos Apóstolos, em Irineu, Tertuliano, Orígenes, Eusébio, etc., resultaria uma variedade incrível de seitas dos mais diferentes tipos, ainda que em si formalmente unitárias, e de tal vitalidade (como demonstra sua difusão) que não se poderia por menos que ver nelas uma séria ameaça para a vida do cristianismo, apenas nascido.
Estas seitas não eram mais que uma deformação da verdade cristã. Mas o veredito do Senhor (Mt 12:25) 47 não as afetou ilimitadamente. Este reino não caiu; através daquelas deformações não estava essencialmente dividido. À vista dos mártires que produziram algumas das Igrejas separadas, à vista de seu zelo religioso e ante a ampla difusão e larga duração de alguns cismas, não é legítimo falar de ramos secos, desgarrados do tronco.
O mistério deste fenômeno religioso-eclesiástico pode aclarar-se a si: à unidade do cristianismo depende da unidade de sua verdade. Mas esta verdade não é somente uma doutrina. Tampouco os nestorianos e os monofisítas, unanimemente condenados pela Igreja ortodoxa tanto oriental como ocidental, se haviam separado absolutamente da verdade cristã. Seguiram sendo cristãos, professando a Jesus Cristo, Senhor e Redentor, Deus e homem. A evolução moderna nos demonstra quão profunda é a unidade. Nos pontos em que os monofisitas e os nestorianos permaneceram fiéis à suas doutrinas primitivas, às diferenças com a doutrina verdadeira tem permanecido reduzidas hoje a meras diferenças de palavra. A unidade da Igreja é algo muito distinto da uniformidade. Mas, por outra parte, essa unidade subsiste também em não ter nenhuma contradição interna. Este era o convencimento de todas as Igrejas até a confusão espiritual da Idade Moderna.

42 Em Éfeso ensinou em uma aula filosófica (Atos 19:9).
43 Como contrapartida, junto com a gnosis, temos que considerar aqueles que queriam helenizar o cristianismo, aos quais se refere Eusébio chamando-os teodocianos. Para eles, como para Apeles (discípulo de Marcion, § 16), desempenhava um papel muito importante à alta estima, quase religiosa, do silogismo, como uma força que obrigava a consciência, de modo que seu descuido seria pecado.
44 Não deve confundi-lo com o orador pagão Luciano de Samosata, que até o ano 170 escreveu uma sátira contra os cristãos.
45 Desde o século II o nome de católicos (a expressão "Igreja católica" aparece pela primeira vez em Ignácio de Antioquia) está difundido por todas as partes para designar aos membros da Igreja "grande" e diferenciá-los das comunidades menores dos hereges.
46 E incluso mais ao norte; também foi nestoriano o primeiro mosteiro cristão da China; igualmente foi nestoriana a primeira Bíblia da china.
47 "Todo reino dividido será devastado."

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Attikis, Greece
Sacerdote ortodoxo e busco interessados na Santa Fé, sem comprometimentos com as heresias colocadas por aqueles que não a compreendem perfeitamente ou o fazem com má intenção. Sou um sacerdote membro da Genuina Igreja Ortodoxa da Grecia, buscamos guardar a Santa Tradição e os Santos Canones inclusive dos Santos Concílios que anatematizam a mudança de calendário e aqueles que os seguem, como o Concílio de Nicéia que define o Menaion e o Pascalion e os Concílios Pan Ortodoxos de 1583, 1587, 1593 e 1848. Conheça a Santa Igreja neste humilde blog, mas rico no conteúdo do Magistério da Santa Igreja. "bem-aventurado sois quando vos insultarem e perseguirem e mentindo disserem todo gênero de calúnias contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos pois será grande a vossa recompensa no Reino dos Céus." "Pregue a Verdade quer agrade quer desagrade. Se busca agradar a Deus és servo de Deus, mas se buscas agradar aos homens és servo dos homens." S. Paulo. padrepedroelucia@gmail.com