quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

30. Os Grandes Pais da Igreja Latina.

30. Os Grandes Pais da Igreja Latina.




Traduzido pelo Presbítero Pedro Anacleto



I. Santo Ambrósio.

1. Santo Ambrósio (nasceu no ano 339 em Tréveris) encontra¬¬-se na tradição quase exclusivamente como um dos quatro grandes Pais da Igreja latina. Seu carácter espiritual é, efetivamente, a base de toda sua obra. Mas sua importância transpassa os limites da esfera teológica, estando também na concreta estruturação eclesiástica e político-eclesiástica de seu tempo. Para esta tarefa estava ele preparado tanto por sua ascendência (filho do prefeito galo de Tréveris) como por sua educação (em Roma) e por sua carreira como alto funcionário do Estado. Ainda jovem, sendo governador das províncias setentrionais da Itália, sem estar todavia batizado, foi eleito inesperadamente bispo de Milão, a cidade de sua residência (374).

Foi uma das figuras chave de seu tempo, uma personalidade eminentemente ocidental naqueles decênios do despertar geral da teologia no Ocidente, donde também seus contemporâneos mais jovens, Jerônimo e Agostinho, com suas pessoais interpretações e refundições da teologia oriental, estavam tratando de superar o atraso intelectual e assegurar definitivamente o patrimônio de fé já definido. Foram também os decisivos anos em que sob o imperador Teodósios, no Concílio de Constantinopla (381), se determinou que o império fora exclusivamente cristão (sem paganismo) e que a Igreja imperial fosse unitariamente "ortodoxa" pela aceitação geral do símbolo niceno.

2. Apesar dos decretos sinodais, os bispos arianos e arianizantes conservaram suas sedes episcopais sob o imperador Valentiniano e Graciano. Também Augêncio, predecessor de Ambrósio, havia sido ariano, e o clero estava assim em parte. Ambrósio logrou vencer o arianismo e fazer que o clero se unisse.

O Ocidente, bastante isolado do Oriente, apenas tinha conhecimento dos supostos teológicos do Concílio Niceno ou, respectivamente, do arianismo (e suas trincadas ramificações). Foi primeiro Santo Hilário de Poitiers, depois de haver pagado sua fidelidade ao Sínodo Niceno com o exílio ao Oriente e haver podido ali penetrar nos controvertidos problemas teológicos, que ao regressar a sua sede episcopal (360-361) tratou de que o Ocidente se ocupasse daqueles problemas. O iniciado por Hilário o completou em poucos anos a Ambrósio com seu próprio esforço, assombrosamente fecundo, pois não havia estado previamente instruído em teologia. E o conseguiu sobre a base da teologia grega de um modo se não genial e criador, foi ao menos original e adaptado às características do Ocidente, que não buscava precisamente a especulação, senão antes de tudo a clareza e a firmeza: "Mais vale temer que conhecer os abismos da divindade."

Logrou vencer a tenaz confusão teológico-dogmática vigente em Ilíria e Itália sustentada e fomentada em parte pela corte imperial do Ocidente (a imperatriz-mãe Justina; veja mais adiante), em parte pelos bispos semi-arianos e em parte também pelo arianismo dos godos. Desde um princípio compreendeu a relação essencial entre doutrina ou pregação da doutrina e Igreja. Viu que é na retidão da profissão de Fé —que a Igreja anuncia— onde está o fundamento e a garantia de sua autonomia. E por isso seguiu lutando a favor de Nicéia (com sua pregação e seus escritos), tanto no campo teológico, pela pureza da Fé, como no político-eclesiástico, pela independência da Igreja das intromissões do poder estatal. E assim conseguiu nada menos que a "reorganização da Igreja estatal sobre a base nicena" (Von Campenhausen, Padres latinos).

3. O centro de seu trabalho episcopal foi a cura de almas por meio da pregação. Seus sermões tratavam preferentemente de explicar as Escrituras, em especial o Antigo Testamento, ao qual Ambrósio, servindo-se do método alegórico, então novo no Ocidente, o finalizou por uma parte seu carácter escandaloso e por outra o fez ganhar novas profundidades.

Mas nos escritos de Santo Ambrósio nos surpreende — pouco antes de Santo Agostinho!— um profundo conhecimento de São Paulo. Junto ao rigor da lei encontramos a misericórdia do evangelho. Descobrimos uma atitude religiosa global, arraigada na consciência e que exige uma renúncia ao pecado como penitência interna. O interesse, sem prejuízo da elaboração teológica, está sempre orientado para os valores religiosos e práticos. A expressão é clara e sóbria. E está suportados por uma intensa atividade pastoral, admirada pelo mesmo Santo Agostinho, nos diversos âmbitos ministeriais (especialmente na instrução dos catecúmenos), apoiada também em uma vida de oração e ascese.

4. Para o historiador interessado na investigação das causas dos acontecimentos, com os fenômenos da crise política pela sobrevivência do Império romano ocidental, que decididamente se agravou com a migração dos povos, aflora o problema de todavia distante nascimento da civilização ocidental. Toda sua história, desde seu início, estará obscurecida pela decisiva questão de como a Igreja e o poder político haverão de "compartir" sua direção: com um claro distanciamento do sistema oriental, no qual o imperador foi e segue sendo o senhor dos dois poderes.

a) Muito antes de que os papas Gelásio e Leão I proclamassem, no século seguinte, a separação de ambos os poderes, já foi Ambrósio, o defensor da independência da Igreja, que anunciou a autonomia de cada um dos dois poderes no campo respectivo. Em tudo o que atém à religião, em assuntos de Fé e de constituição eclesiástica é o bispo, com sua confiança posta em Deus, o único que tem competência direta e, chegado o caso, deve "oferecer resistência," isto é, negar ao imperador os meios da graça, separando-o da Igreja. A Igreja deve ser independente. "O imperador está na Igreja, não sobre ela."

Mas o mais importante é que nestas expressões e decisões (tão numerosas) quem fala, no fundo, é sempre o sacerdote. Quando Ambrósio tem que estabelecer certas exigências que por sua natureza tocam diretamente a esfera política, estas nunca estão motivadas pela ânsia de poder; Ambrósio, que no fundo é sensível à idéia do Estado ou Império romano, jamais pensa em humilhar a quem ostenta o poder estatal ou em submetê-los a sua própria esfera do poder eclesiástico, e muitíssimo menos em querer triunfar sobre eles. Muito ao contrário, Ambrósio é talvez a representação mais pura e fiel que conhecemos de uma relação equilibrada e efetiva entre ambos os poderes; é plenamente sensível à independência do poder estatal, que para ele não só é evidente, senão uma necessidade para a justa ordem do mundo. Mas este poder tem um limite: a revelação, a verdade da Fé cristã e a Igreja.

b) Nos múltiplos e importantes conflitos com a corte, a imperatriz-mãe, o conselho imperial e o mesmo imperador foi um tático extremamente hábil e refinado, decidido a tudo, mas pensando e agindo sempre como sacerdote e pastor. Neste sentido, negou ao paganismo o reconhecimento oficial por parte do Estado cristão (a reconstrução do altar da deusa Roma no Senado, os sacrifícios correspondentes, a manutenção do apoio financeiro público para os colégios de sacerdotes pagãos), escamoteando a solicitude magistralmente pesada, mas profundamente cética 26, do retórico Símaco; se opôs à entrega de sua igreja ao bispo anti-niceno proposto pela corte, e isso ainda que um edito imperial tivesse saído em defesa dos semi-arianos (homoousiani) e tivesse ameaçado de morte a seus adversários por delito de lesa majestade; organizou formalmente a oposição (que estava convertendo em motim) dos fiéis reunidos na igreja; mediante uma alocução pública no templo ante a comunidade reunida, obrigou ao imperador Teodósios a revogar o decreto de reconstrução da sinagoga, incendiada por uns monges fanáticos. No mesmo sentido, depois da cruel matança de Tessalônica (390), sem qualquer pronunciamento de aparência cruel, escreveu a Teodósios comunicando-o claramente a ameaça de excomunhão, o que o mesmo Teodósios interpretou como uma séria advertência do sacerdote e pastor; assim, Teodósios veio à Igreja sem ornamentos imperiais e confessou sua culpa ante a assembléia, distinguindo logo a Ambrósio com sua amizade, até a morte.

5. Como já temos indicado, Ambrósio pensa teologicamente, sendo seu ponto de partida específico a Igreja e, nela, seu caráter sacramental. Seu conceito da missa como sacrifício místico é profundíssimo e orientador. E ele foi também quem descobriu a força inerente à oração cantada por toda a comunidade na igreja. Também aqui recolheu a herança do Oriente, enriquecendo o patrimônio e presenteando a seus fiéis com novos hinos, que não somente comoveram a Agostinho 27, senão que ainda hoje nos edificam.

Finalmente, esse bispo figura também entre os grandes modelos da Igreja por haver sido um pai dos pobres, como haveriam de sê-lo depois, e cada vez mais, os bispos durante a época da invasão dos bárbaros: os pobres são o tesouro da Igreja, à qual, por sua vez, pode ser totalmente pobre.



II. Santo Agostinho.

1. O Império romano se havia convertido no marco do desenvolvimento e robustecimento da Igreja (os cristãos viam nesta coincidência a execução de um plano divino). Sob a proteção do Império Romano, a Igreja havia começado a plasmar a nova vida cristã. No momento em que a parte ocidental do Império começou a cambalear-se ante o assalto dos povos germânicos e o ocaso da civilização antiga entrou em sua fase aguda (§ 32), Deus concedeu a sua Igreja um homem que compendiava em si: 1) todo o trabalho realizado na Igreja até então, 2) toda a antiga civilização greco-romana, e que 3) a unificou e incrementou com sua eminente e criadora personalidade e santidade, de forma que esta riqueza foi capaz de guiar e regular a formação espiritual e política do novo mundo medieval que se aproximava: Aurélio Agostinho.

2. A imponente obra de Santo Agostinho se deve antes de tudo à poderosa plenitude e criativa profundidade de seus conhecimentos espirituais, que o situam ao lado de Platão, e ao mesmo tempo à sua relevante personalidade, caracterizado e fecundado tudo isto por uma extraordinária força religiosa. A religiosidade de Santo Agostinho era inusitadamente ampla, e se viu realizada e iluminada pela Fé cristã. Em sua figura há algo infinitamente atrativo, intimamente comovedor, que em nada tem diminuído com o passar dos séculos. Nós estamos ante um gênio como a história raras vezes tem conhecido e a par, ante um heróico lutador. Por ele sabemos de experiências singulares, que agitam, iluminam e regeneram, de autênticas revoluções espirituais, religiosas e morais no verdadeiro sentido da palavra. Santo Agostinho se fez cristão através de um longo e misterioso processo, umas vezes vistoso e ufano, muitas outras fatigoso e até atormentador, no qual —segundo suas próprias palavras— Deus o buscava e acabou por pegá-lo. Durante um tempo se abateu sobre ele a dúvida, quase um verdadeiro desespero de poder falar a verdade. A busca apaixonada do verdadeiro, a heróica luta de sua vontade, a experiência do fracasso moral e da angústia pelo pecado e, finalmente, o feliz refúgio na graça de Deus, que se transformou em uma adoração de pleno direito de idéias 28, quase inesgotável, demonstram uma inconcebível riqueza de valores espirituais, mais exatamente religiosos e, em definitiva, cristãos. Recorreu, saboreou e sofreu todos os altos e baixos da humanidade, toda sua miséria, mas também a dita da ciência universal e da atividade criadora. Conseqüência desta busca foi sua grande humildade, que o fazia dizer aos maniqueus: "Que se irritem contra vós aqueles que não têm experimentado o difícil que é falar a verdade" 29. Uma adequada caracterização de sua íntima profundidade se encontra em suas próprias palavras, mais freqüentemente citadas que compreendidas, que constituem não só o começo, senão o manancial do qual brota a explosão esmagadora de suas Confissões (como reflexo de sua evolução): "Inquieto está nosso coração, oh Deus, até que descanse em Ti." Santo Agostinho foi "uma das almas mais religiosas que jamais existiu." Toda sua vida girou em torno a Deus. Muito antes de que se desse conta, já O estava buscando, uma antecipação vivente das insondáveis palavras de Pascal: "Tu não me buscarias se não me já tivesses encontrado." Depois de sua conversão, Deus foi para ele mais próximo e mais certo que todo o mundo.

3. Santo Agostinho nasceu no ano 354 em Tagaste, Numídia,( hoje Argélia). Seu pai era pagão; sua mãe, a quem veneramos como Santa Mônica, era cristã e fez que o menino fosse admitido entre os catecúmenos. Em seus anos de estudante levou uma vida bastante desenfreada moralmente. Suas Confissões estão cheias do mais amargo arrependimento daquele tempo. Depois de terminar fora seus estudos (se fez mestre de retórica), começou sua mencionada evolução interna, tão singularmente rica; o estudo o proporcionou toda a cultura da época, que ele pode assimilar e elaborar criadoramente, dotado como estava de altos dons. A primeira ocasião de aprofundar seu pensamento presenteou com Hortensius, um escrito filosófico de Cícero. Aos vinte anos (desde o ano 375), inquieto e ansioso pela verdade, se fez "ouvinte" (o grau mais baixo) dos maniqueus. Nove anos tardou em desfazer-se desta heresia; mas o maniqueísmo, para seu bem, o converteu em cético. Sua insegurança interior se fez cada vez maior, sem deixar por isso de buscar incansavelmente a verdade.

No ano 383 chegou a Milão como professor de retórica. Ali haveria de viver o período mais decisivo de sua evolução. Antes os relatos da Sagrada Escritura o haviam parecido "contos de velhas," mas agora, sob a influência das homilias de Santo Ambrósio, a leitura das Sagradas Escrituras se tornou um gozoso costume. Nesta época, o neoplatonismo, a pouco citado por Ambrósio, teve nele efeitos relaxantes. Então ficaram gravadas para sempre algumas actitudes anímicas e concepções especulativas fundamentais. Daqui procede tanto seu conceito de Deus (= summum bonum) como sua religiosidade mística (contemplação deste supremo bem). O neoplatonismo fez Agostinho descobrir um novo mundo religioso suprasensível, uma nova esperança de redenção e comunhão com Deus. Este terreno espiritual assim preparado foi logo plenamente fecundado pelas cartas de São Paulo. Santo Agostinho escutou a chamada da graça e com trinta e três anos, na noite de Páscoa do ano de 387, se fez batizar com seu filho e um amigo de Ambrósio.

Antes de sua viagem de regresso à África faleceu em Óstia sua mãe, Mônica (novembro do ano 387). Seguiram logo três anos de solidão em suas propriedades em Tagaste, dedicados à oração e ao estudo; foram os grandes exercícios espirituais do santo antes de seu heróico trabalho ao serviço da Igreja. No ano 391 Agostinho foi ordenado sacerdote e no ano 395 consagrado bispo auxiliar de Hipona.

Sendo bispo (desde o ano 396) viveu como um monge, junto com seu clero. Ocupou sua vida em toda sorte de atividades pastorais: a ação (atividade caritativa, vida de sacrifício pessoal), a palavra (pregação, catequese para o clero e para o povo), suas obras literárias e a oração.

Morreu no ano 430, quando os vândalos assediavam sua cidade, chegou um novo tempo quando, "a Idade Média," estava às portas.

4. Os escritos de Santo Agostinho são filosóficos, filosófico-históricos, exegéticos, dogmáticos, polêmicos, catequéticos e autobiográficos. Entre os últimos figuram: 1) suas famosas Confissões, um dos grandes livros da literatura mundial, que tem exercido enorme influência em todos os tempos até nossos dias; 2) suas Retratações, uma espécie de olhada retrospectiva e autocrítica de seus numerosos escritos compostos até o ano 427.

Seu livro de maior influência é certamente A cidade de Deus. Está dirigido contra algumas acusações que consideravam o curso da história universal como refutação das doutrinas cristãs ou viam em desacordo com a bondade de Deus. Oferece uma genial filosofia da história, específicamente cristã, que influenciou de modo essencial nas idéias medievais, mais ainda, os deu propriamente seu fundamento; se apresenta como uma apologia frente às objeções cristãs e pagãs, valendo-se das idéias de providência, livre arbítrio, eternidade e, sobre tudo, da vontade inescrutável de Deus, e assim explica o sentido do mal e da dor no curso da história. Há duas cidades, uma a de Deus, outra a do diabo. A cidade de Deus é o poder espiritual, que à luz da revelação é senhor nato até do poder temporal ainda que neste século esteja geralmente submetido; uma obra divina, em cujo cumprimento trabalha a história universal. Mediante a "lei eterna," o divino legislador estabelece misteriosamente o número dos eleitos a quem pertence a cidade de Deus. A comunidade dos eleitos é a autêntica civitas Dei, a cidade de Deus, precisamente invisível! Por isso até o juízo do último dia estas duas cidades, a de Deus e a do diabo, estão entrelaçadas. E por isso, até aquele dia, os justos não são sempre nem sensivelmente identificáveis. E isto é devido a que há inimigos da Igreja que não são inimigos de Deus, senão que um dia serão admitidos como filhos de Deus; e, ao contrário, muitos que estão selados pelo sacramento não se salvarão.

Aos mencionados escritos temos que lembrar também de seus numerosos sermões e cartas; estas últimas raras vezes tratam de assuntos pessoais; são mais bem tratados filosófico-teológicos.

5. A importância teológica de Santo Agostinho se baseia principalmente em duas coisas: 1) foi o pregador do pecado e da graça (contra o pelagianismo); 2) foi o arauto da Igreja visível, hierarquicamente estruturada, como única mediadora da salvação 30, e de sua santidade objetiva (contra o donatismo, cf. § 29). Também na cristologia se impôs a vasta fecundidade de Santo Agostinho por meio das escrituras e seu esclarecido conceito da pessoa do redentor. Já antes de Éfeso e de Calcedônia (§ 27) ensinou a Fé ortodoxa sobre a única pessoa de Cristo e suas duas naturezas. Quizera ter podido colocar a semente da difusão das controvérsias cristológicas. Mas morreu às vesperas do Concílio de Éfeso.

Primeiramente Santo Agostinho teve sua ascendência espiritual na filosofia estóica; depois se nutriu intensamente, como já dissemos, de Platão (neoplatonismo) e, enquanto teólogo, do trabalho intelectual dos Padres gregos. A religião como conhecimento a encontramos quase da mesma forma (mais aprofundada) que nos apologetas do século II. Mas isto se deve, como carácter determinante, um duplo aspecto: 1) tem um contacto íntimo e originário com seu Deus, princípio de todo ser, intimidade que supera toda reflexão e toda fórmula; 2) pessoalmente experimenta em si a força do pecado, a necessidade da redenção do homem, a onipotência da graça; por isso coloca a teologia paulina do pecado e da graça como ponto central de seu pensamento. Ambas correntes teológicas, reunidas em Agostinho, dominaram a Idade Média.

6. Santo Agostinho é uma das máximas encarnações do pensamento cristão, da síntese cristã; não só pela grande plenitude de seu espírito, interessado sempre em todos os problemas; não só porque ele representava a especulação e a mística, senão principalmente pela união nele de uma piedade personalíssima (a piedade de uma mente tão genial e poderosa!) com a fidelidade à Igreja. Experimentou em si mesmo como poucos a vivência religiosa e, ainda também anunciou intelectualmente, abrindo caminhos científicos, a objetividade da Igreja sacramental. Nele temos um insigne modelo da síntese cristã-católica entre comoção pessoal e subjetiva e aceitação de valores objetivos: ninguém tem valor se primeiro não está o homem interior; mas este não é a medida de si mesmo e das coisas, senão que frente a ele está indefectivelmente a única Igreja, instituição da graça, fundada por Jesus. O convencimento individual, decisivo, está complementado com a igualmente indispensável formação da consciência na revelação objetiva, com a comunidade de Fé sacramental e eclesial. Com enorme poder intelectual, iluminado pela graça, Agostinho sustentou em si mesmo e proclamou a tensão entre estes dois pólos, vitalmente imprescindíveis 31. A carência deste poder intelectual contagioso e avassalador converteu mais tarde a Lutero em herege.



III. São Jerônimo.

1. Também São Jerônimo (entre os anos 345-420), nascido de família cristã em Estridão (Dalmácia) e batizado relativamente jovem, é um dos quatro grandes Pais da Igreja latina. Converteu-se da atividade secular à religiosa e em Aquiléia abraçou uma espécie de vida monástica em comunidade com alguns amigos. Nunca se cansou de louvar a ascética, que ele praticou durante muitos anos, e a virgindade, pela qual entusiasmou a muitos. Havia conhecido a vida monástica em Tréveris, donde Santo Atanásios compôs sua Vida de Santo Antônio. Com sua propaganda literária deu a conhecer o verdadeiro ideal monástico no Ocidente. Suas homilias e instruções privadas e íntimas no convento de Belém, seu ardente amor a Cristo e sua sencível fidelidade à Igreja Romana e sobre tudo aos serviços, jamais bem ponderados, que este filólogo (dominava também o grego e o hebraico) prestou à Igreja, dotando-a do texto mais puro da Sagrada Escritura, do Antigo e do Novo Testamento 32, junto com uma grande quantidade de comentários dos livros sagrados, são outros de seus muitos e extraordinários títulos honoríficos.

2. Mas frente a estes méritos apresenta também um caráter impregnado de excessivas debilidades humanas, fogoso, facilmente irritável, perseguia a seus adversários com malvada e mordaz ironia e atém com ódio, pois não podia vencer sua ilimitada vaidade. Em resumo, seu carácter não corresponde precisamente à idéia que geralmente se tem de um santo.

Contudo, viveu como um monge e inclusive durante quase dois anos como um ermitão (no deserto de Chalcis, próximo a Alepo). Tem que se ter presente que este "monacato" não significava pobreza nem autêntica sujeição à obediência. Mais importante é o fato de que sua aspiração ascética pessoal raras vezes unitária e interiormente nunca é livre de tudo. Segundo suas palavras, foi o "medo do inferno" o que o levou ali, à solidão, donde não chegou a livrar-se da nostalgia do vício e do ambiente refinado da grande cidade, Roma 33, e de seu "ardente desejo." Porém, resistiu.

3. O verdadeiro ponto que caracteriza toda sua vida é sua incessante aspiração á cultura. Também em seu "monacato" o que realmente o importou foi que seu piedoso retiro o proporcionou muito sossego e amparo para seus estudos. É um apaixonado amigo e colecionador de livros; sempre tem consigo sua biblioteca, que constantemente aumenta a sua própria costa e para o exterior, tanto na habitação de seu amigo de Aquiléia como na gruta do deserto em seu tempo de ermitão, igualmente em Roma, sendo influente secretário privado do Papa Dâmaso, e em Belém da Palestina, ao exercer o cargo de superior de seu mosteiro. É um constante desejoso da cultura que o impulsiona ao intercambio de idéias pela via oral ou escrita com amigos e amigas, o que ao fim se traduz em uma vasta correspondência: pontos ambos verdadeiramente "humanistas." Formam parte do quadro típico de sua vida 34, pequenos e grandes círculos de nobres damas, a quem ele entusiasma pela ascética e a vida claustral, que o escutam e adimiram, que se interessam por seu trabalho.

Jerônimo viveu profundamente o problema humanista da "cultura mundana e ânsias de perfeição cristã" e o descreveu (por exemplo, em seu diálogo em sonhos com Deus, no que se o intitula de "ciceroniano"); esta tensão jamais logrou superá-la inteiramente.

4. Quão egoísta foi seu interesse pela formação teológica, à qual dedicou tão enorme trabalho, nos demonstra sua postura com respeito à controvérsia ariana. E se tratava de um problema de importância vital para a Igreja. Mas Jerônimo era um tipo adogmático. As fórmulas teológicas pareciam a ele mais ser sutilezas gregas ou pleitos de monges.

E isto se demonstrou igualmente no tempo que passou em Constantinopla; eram os anos decisivos da vitória de Nicéia (379-382). Porém, nas posteriores controvérsias cristológicas jamais adotou uma posição clara 35. (Deveremos recordar isto quando mais tarde falaremos do "adogmatismo" de Erasmo; Jerônimo foi seu patrono protetor).

5. Falando de Jerônimo, sempre temos que lembrar o seu trabalho bíblico. A fonte e o modelo de seu fazer científico sobre a Escritura, que ele queria traduzir aos latinos da "verdade" hebraica e grega, foi sobre tudo Orígenes. Jerônimo, de fato, renovou a Bíblia latina e esclareceu a raiz da confusão existente. Desde então lemos o texto na forma por ele elaborada, a Vulgata.

Também comentou grande parte dos livros da Escritura. Baseando-se na verdade histórica e, conseqüentemente, no sentido literal, quis destacar seu conteúdo espiritual. Por isso combateu depois tão duramente a seu venerado modelo Orígenes, por causa de seu alegorismo. A Jerônimo o único que verdadeiramente o importava era o texto correto. Sua interpretação deixa bastante a desejar (e não só pela inaudita rapidez de seu trabalho, o que por força tinha que acarretar erros por inadvertência).

O fato mesmo das traduções implica um importante problema com respeito à conservação pura da revelação. Se adverte especialmente no passo do grego a uma língua de espírito tão radicalmente diferente como o latim. Este problema, de tanto alcance para a história da Igreja, com o que já temos tropeçado em outro contexto (§ 25:7), se pode exemplificar na tradução de uma palavra como "metanoeite = mudai de pensar" com "poenitentiam agite = fazei penitência" (Mt 3:2; 4:17).



26 "Que mais dão as razões com as que tratamos de investigar a verdade! Pode ser que não só exista um caminho para alcançar o grande mistério!"

27 Agostinho em suas Confissões: "Não fazia muito tempo que a Igreja milanesa havia começado a celebrar os ofícios divinos desta forma consoladora e edificante, de modo que as vozes unidas no canto em santo fervor uniam também os corações dos irmãos... Por isto então estava ordenado que os hinos e os salmos se cantassem ao modo oriental..." (9:7). Em 9:12 cita duas estrofes "que cantou tu Ambrósio" e que o proporcionaram consolo na tumba de sua mãe.

28 Este ponto o distingue especificamente de outros santos piedosos

29 Seu respeito à verdade está estreitamente relacionado com seu conceito da graça: Deus la da gratis.

30 Mas em tempos difíceis também pode suceder que a providência permita que sejam excomungados os inocentes. Estes podem ter sua salvação fora da Igreja; ainda que apesar de toda sua boa vontade não possam reingressar, podem até sua morte defender e confessar a Fé católica. O Pai os escuta no escondido.

31 Esta síntese, naturalmente, não é uma harmonização pura e simples. Também está cheia de tensões. Especialmente certas formulações extremas da última época de Agostinho tornam difícil, por não dizer impossível, sua inserção linear no conjunto do sistema. Cf., por exemplo, suas idéias referentes à massa damnata e à predestinação absoluta, que ele admite, ainda que mantendo também o livre arbítrio.

32 É interessante a naturalidade com que Jerônimo descreve as consideráveis dificuldades que teve que vencer quando decidiu estudar seriamente o hebraico.

33 Sim sua crítica é exata, a situação media da sociedade cristã foi pouco edificante.

34 É surpreendente a intensidade com que os mesmos pontos da vida comum ascética e erudita voltariam a aparecer em certos monges rigorosos e humanistas do século XVI! Cf., por exemplo, os justinianos (veja t. 2, Reforma católica).

35 Como simpático complemento disto temos de recordar sua distinção entre erro e errante (heresia e herege; cf. § 15,II).



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Attikis, Greece
Sacerdote ortodoxo e busco interessados na Santa Fé, sem comprometimentos com as heresias colocadas por aqueles que não a compreendem perfeitamente ou o fazem com má intenção. Sou um sacerdote membro da Genuina Igreja Ortodoxa da Grecia, buscamos guardar a Santa Tradição e os Santos Canones inclusive dos Santos Concílios que anatematizam a mudança de calendário e aqueles que os seguem, como o Concílio de Nicéia que define o Menaion e o Pascalion e os Concílios Pan Ortodoxos de 1583, 1587, 1593 e 1848. Conheça a Santa Igreja neste humilde blog, mas rico no conteúdo do Magistério da Santa Igreja. "bem-aventurado sois quando vos insultarem e perseguirem e mentindo disserem todo gênero de calúnias contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos pois será grande a vossa recompensa no Reino dos Céus." "Pregue a Verdade quer agrade quer desagrade. Se busca agradar a Deus és servo de Deus, mas se buscas agradar aos homens és servo dos homens." S. Paulo. padrepedroelucia@gmail.com