Traduzido
pelo Presbítero Pedro Anacleto
1.
Ao falar de Gregório Magno já pudemos comprovar que seu
olhar se voltava para os povos bárbaros da Europa, para congregá-los por meio
da evangelização em torno a Roma, a cátedra Petri. Esta tendência foi
seguida cada vez mais intensamente pelos papas do século VIII. Foi um movimento
paralelo à confrontação com os imperadores romanos do Oriente e a uma progressiva
separação deles, e se expressou na experiência de que "todo o Ocidente tem
grande confiança em nós e em São Pedro, a quem todos os reinos do Ocidente
veneram como a Deus na terra," e estão dispostos a defender ao papa contra
o imperador iconoclasta. Efetivamente, as milícias de Pentápolis e Veneza
responderam a uma chamada semelhante do Papa Gregório II, da qual são as palavras
anteriormente citadas, dirigidas ao imperador Leão III.
Papa
Gregório II
Imperador Leão III
Não é possível comprovar se ditas manifestações
estiveram já inspiradas na idéia de um novo Império ocidental em união
com a Igreja ou se a ameaça econômica e política do Oriente, junto com a idéia
religiosa da evangelização nórdica (a legatio romana de Bonifácio!) sob
o reinado e com a ajuda dos príncipes francos, fez surgir um novo programa
eclesiástico-político. A evolução efectiva, que haveria de culminar
primeiro na aliança entre o papado e os francos e, depois, no novo Império
romano ocidental e a vinculação do papado com ele, é em todo caso deduzível dos
acontecimentos históricos.
De momento, aqui nos ocupamos só com as primeiras
etapas: Gregório II já tinha planejado uma viagem aos povos do Norte. Gregório
III ainda chamou em vão a Carlos Martel no ano 739, para que se encarregasse da
proteção de São Pedro. A realização efetiva abriu caminho graças à decisão do
Papa Zacarias, como veremos, e às viagens dos papas através dos Alpes e, logo,
aos dos reis nórdicos até Roma, donde das mãos do vigário de São Pedro e junto
a seu sepulcro recebiam, mediante unção consacratória, a dignidade imperial
universal.
Papa Zacarias
Desde o princípio houve uma grande tensão (decisiva
em seus efeitos históricos) entre os objetivos e ao conceito dos bispos
romanos por uma parte e dos francos por outra. Os papas elevaram ao mordomo dos
francos à dignidade real e logo o fizeram imperador, a fim de que como patrício
romano protegesse a Igreja de São Pedro. A autoridade quase absoluta do
rei franco sobre sua Igreja territorial, que logo se converteria em Igreja
imperial, pretendeu muito mais. Mas, desde logo, isto não correspondia em
absoluto ao ideal eclesiástico-universal dos papas.
Segundo a diversa situação política objetiva, as
pretensões de ambas as partes se faziam respectivamente mais unidas ou se recuavam:
mas a tensão como tal se manteve e fez que a evolução avançasse, tal como agora
poderemos segui-la ao longo da história da Idade Média. A aliança entre o
papado e os francos e logo entre o papado e o império fez que a Idade Media
alcançasse seu apogeu. Mas os problemas inerentes a esse processo não se
solucionaram ao todo e por isso a Idade Media se quebrou, por assim dizer, em
si mesma.
A análise e as considerações que seguem não devem
se interpretar em um sentido político excessivamente realista. Os francos
ocuparam o lugar dos "gregos," isto é, dos romanos do Oriente; mas se
diferenciavam fundamentalmente deles pela anteriormente dita veneração dos
germanos (não isenta de infantilismo) a Pedro, o porteiro do céu, e pelo
consequente reconhecimento real (que, nem por isso, não deve entender-se no
sentido demasiado estrito) de seus sucessores e representantes, os papas.
2. Bonifácio havia vinculado estreitamente a
Igreja franca com Roma. O bispo de Roma, o Papa Zacarias, se dirigiu a Pepino
no ano 751. Uma vez que Carlos Magno abandonou o governo, Pepino foi o único
dono do poder político, mas todavia não estava assegurado contra a competência
de seus filhos, que entretanto haviam alcançado a maior idade. Ao longo, só a
dignidade real podía proteger eficazmente sua posição de força. Por isso ele,
que já era "senhor" da Igreja territorial franca, perguntou ao papa
"se quem já possuia o poder real não deveria também ser rei." A pergunta
implicava indiretamente o reconhecimento, até então inaudito, de uma autoridade
do papado com caráter vinculante no plano estatal. Zacarías concordou a elevar o
mordomo à dignidade real. Pepino
foi eleito rei. Os bispos o conferiram uma unção que outorgou ao reino
franco uma consagração cristã-eclesial e com isto uma nova autoridade. Dadas as
circunstâncias, isto significou ao mesmo tempo uma união do rei franco com
Roma.
Não importa se foi Bonifácio que ungiu a Pepino ou
se esta unção a realizaram outros bispos francos; em qualquer caso, aqui
encontrou sua continuação à obra mais pessoal de Bonifácio e aqui se iniciou
aquela grandiosa aliança de Carlos Magno com a Igreja, que daria origem à
verdadeira Idade Média.
3. Esta aliança entre o papado e os francos se
completou, reinando ainda Pepino, com o Papa Estevão II (752-757). A Itália
todavia pertencia nominalmente ao Império Romano do Oriente; em Ravena residia
o representante do imperador (§
35), mas sua influência política se havia debilitado enormemente. Porém, o
papa continuava sendo súdito político de Bizâncio; até os documentos papais se
datavam ao modo bizantino, e os papas da época, apesar da mútua hostilidade,
guardaram aos imperadores bizantinos fidelidade durante um tempo surpreendentemente
longo. Por outra parte, o prestígio secular e o valor político real do papa cresceram
uniformemente (§
35). Mas os longobardos queriam Ravena e Roma e se possível, toda Itália. Gregório
III foi o primeiro papa que solicitou de Carlos Martel ajuda e proteção contra
eles, mas em vão. Quando a pressão dos longobardos se fez questão de vida ou
morte (conquista do exarcado de Ravena e de Pentápolis pelo rei Astolfo,
749-756) e novamente não chegou ajuda alguma do imperador, o Papa Estevão II se
dirigiu àquele soberano que, em boa parte, devia sua coroa ao papado. Conduzido
e protegido pelos legados francos, em Pavia se separou não só do rei longobardo
(muito apesar deste último!), senão também dos legados do imperador romano
oriental, e no Império dos francos teve com Pepino dois encontros de suma
importância para a história universal, primeiro em Ponthion e logo em Quierzy. Concluidas
as negociações, na Páscoa do ano 754 e na abadia real de St. Denis consagrou a
Pepino pela segunda vez (e ao mesmo tempo a sua mulher e a seus dois filhos; assim,
pois, também ao que logo seria Carlos Magno).
Rei Astolfo
Papa Estevão II
4. Que com isto não ficaram por tudo eliminadas
as profundas tensões existentes é evidente por si mesmo e pelas peculiaridades
da constelação histórica; já iremos conhecê-las.
a) Inclusive esta mesma união (e com ela a
futura unidade do Ocidente) não ficou assegurada de uma vez para sempre. Os
laços dos papas com o supremo senhor político da Roma oriental não estavam
definitivamente quebrados. Os papas, como já se tinha dito, seguiram ainda
muito tempo datando seus documentos segundo os anos do reinado Basileus,
"nosso senhor"; em Constantinopla, apesar do grave escândalo que
provocou o proceder do bispo de Roma, se entendeu a união com os francos antes de
tudo como uma tentativa de defesa contra o inimigo comum, os longobardos. De fato,
o perigo por este lado era muito grande: o piedoso Carlos Magno abandonou
inesperadamente seu mosteiro, a instancias do longobardo Astolfo, para fazer
fracassar a união do papa com Pepino; de êxito se beneficiaram também seus filhos
adultos. De acordo com Pepino, o papa mandou trancar em um mosteiro franco ao
monje fugitivo, antigo mordomo, junto com seus dois filhos.
Mas os francos em absoluto consideraram
definitiva a aliança sem por nenhum reparo; por exemplo, do importante título
de "patrício" não fizeram uso até depois da conquista do reino
longobardo, quando dito título representou não somente deveres, senão também
direitos.
A íntima tensão entre sacerdotium e
imperium se evidenciou já no princípio da aliança: o informe romano
sobre o sucedido em Ponthion-Quierzy é essencialmente diferente do franco na
forma no conteúdo.
Nem porém, aqui havía ocorrido algo decisivo. Se
haviam assentado as bases para o futuro, no sentido da aliança
eclesiástico-política medieval.
b) Se estabeleceu uma série de ações
cheias de simbolismo e se formulou uma série de exigências e reconhecimentos
historicamente vinculantes: Pepino havia prestado ao papa serviços de cavalaria
maior, que no cerimonial cortesão bizantino únicamente podiam prestar-se ao
imperador (pela primeira vez aparece uma vaga indicação do papa como imperador!).
Por sua parte, Estevão, no dia seguinte, vestido de saco e cinza, se havia se
jogado aos pés de Pepino e o havia rogado, pelos méritos do príncipe dos
apóstolos, que o livrara das mãos dos longobardos. Há que ter muito em conta
que o sócio de Pepino neste convenio em definitivo não é o papa, senão Pedro, o
porteiro celestial, cujos "bens" roubados devem ser restituídos a seu
legítimo propietário. Com o qual Pepino assume a defesa dos privilégios de
Pedro 25.
As fontes não nos oferecem um quadro unitário e
claro. O novo está junto ao velho de forma imediata, mas ainda, inconciliável. Se
pode quase palpar com as mãos que tudo está a vir. Umas vezes parece perceber-se
confusamente uma íntima contradição ou divergência, outras parece que
conscientemente se pretende não sair da ambigüidade.
Quaisquer que tenham sido em concreto as
intenções, no fundo o poder profético-espiritual do sumo sacerdote logrou aqui
uma legitimação política, isto é, um poder político: o
eclesiástico-pontifício, com grande estilo, penetrou directamente no
político-temporal. A união e, em certo modo, a mescla de ambas esferas,
base para toda a Idade Média, se deu já aqui, aceitado por ambas as partes, ainda
que, como já se tem dito, arrastrando certas confusões e, sobre tudo, sem que
as tensões mais profundas pudessem serem eliminadas.
c) O proceder de Estevão significou de
fato, ainda que não formalmente, a ruptura com Bizâncio, ou seja, a
ruptura com o antigo Império romano: desde este momento o papado seguiu, em
medida sempre crescente, seu próprio caminho político. O papa exigiu que a ele
se restituísse a zona do imperio como possessão jurídica, conferiu a Pepino o
título de patricius, que até então havia sido concedido exclusivamente pelo
imperador (com este caso pode ver se como o Bispo de Roma exerce poderes que a
ele não corresponde canônicamente (poder político) e começa a desviar por um
caminho diferente do resto da Igreja Universal Ortodoxa, buscando sempre o
poder temporal, o do império), e com isto transferiu ao rei dos francos e a sua
casa a função protetora de exarca imperial de Ravêna. De fato, Pepino atravessou
duas vezes os Alpes (754 e 756) para proteger o papa. Entregou à Sede Romana as
zonas arrebatadas por ele aos longobardos (Pepino mandou que as chaves das
cidades conquistadas fossem depositadas no sepulcro de São Pedro). O papa se
converteu em um soberano temporal; por meio desta "doação de Pepino"
se fundou o "Estado da Igreja" com Roma inclusa (756). O papa, pois,
ficou políticamente sob a proteção dos reis francos. Mas não tardaria em chegar
o momento em que este poder de proteção haveria de converter-se em uma
supremacia política (cf., a este respeito, o mapa 17).
5. Estas concepções (sob muitos aspectos tão diversos,
mas ao principio ainda não claramente delimitadas) sobre a essência e a missão
de cada um dos dois "supremos" poderes e sua relação mútua
encontraram ao longo dos séculos uma expressão literária cada vez mais rica,
primeiro em forma de documentos (autênticos ou falsos), logo depois de tratados
teóricos e, finalmente, de libelos e escritos polêmicos.
Como sempre ocorre em tão complicados processos, o
mais importante são os fundamentos e a tendência evolutiva que neles se aponta.
a) Um dos principais objetivos da Igreja
de Roma foi sua indepêndencia da pressão do Estado, ou seja, do imperador
romano ou romano-oriental. Este motivo ficou refletido na lenda de São Silvestre,
isto é, em uma narração fabulada segundo a qual o papa Silvestre I havia
batizado a Constantino o Grande e o havia livrado com isto da lepra; em
agradecimento o imperador havia dado ao papa valiosos presentes (por exemplo, o
palácio de Latrão).
São Silvestre
Constantino o Grande
Palácio de Latrão
b) Esta lenda encontrou sua redação
literária definitiva em um documento falsificado: a chamada "Doação de
Constantino," que haveria de revestir fatal importância para a evolução do
Ocidente, especialmente para a relação sacerdotium e imperium.
Por desgraça não se pode por definitivamente em claro nem o tempo nem o
lugar de origem de tal documento. Junto a tendencias romano-papais se encontram
também elementos que permitem deduzir influências francas. Na ordem política e
político-eclesiástica esta falsificação foi utilizada únicamente pelos papas,
esporadicamente no século X, mais intensamente no século XI e de forma geral
desde o século XII. Já Otão I e excepcionalmente Otão III (em um documento do
ano 1001) a consideraram uma falsificação. Mas logo foi tida por autêntica
durante toda a Idade Média. No século XV, por fim, foi demonstrada sua falsidade
(entre outros, por Nicolás de Cusa, § 71).
"Doação de Constantino,"
Otão I
Otão III
Nicolás de Cusa
c) O documento falso se fez passar por
decreto imperial a favor do Papa Silvestre e seus sucessores "até o fim
deste tempo terreno."
Esta falsa "doação de Constantino" foi
depois recolhida como a peça principal na chamada "Recopilação de
Decretais" do Pseudo-Isidoro (cf. § 41, II, 3).
6. É evidente que também nós devemos tomar postura
ante tão massivas e falsas afirmações, que tanta trascendência histórica
tiveram.
a) Na Idade Média foram frequentes as
falsificações de documentos 26. O atual conceito de falsificação
de um documento era desconhecido naqueles séculos, alheios por inteiro ao modo
de pensar histórico. A pouco se tratava de formular um direito autêntico,
mas não garantido por escrito. Em outros casos se tratava de fortalecer a
própria posição por meio de documentos inventados. Nas peças falsas da recopilação
pseudo-isidoriana se transluz as duas formas de pensar. O decisivo é a
datação anticipada contrária à verdade (ou também a invenção de documentos
"antigos") com o fim de dar às idéias hierocráticas sustentadas o
caráter de dignidade apostólica ou proto-cristã.
As decretais pseudo-isidorianas desempenharam
depois um papel muito importante na criação da supremacia papal, específica da
Idade Média. O fato de que muitas das peças contidas nelas sejam falsas se
considera como um grave peso contra o catolicismo. Pois, desde o ponto de vista
histórico, a evolução ao pleno poder típicamente medieval do papado se
realizou, efetivamente, também com a ajuda daquelas peças falsas. Daí que um
juízo puramente espiritualista acredita poder discutir o direito do efectivo
desenvolvimento da soberania do papa. Mas é precisamente este juízo moderno dos
sucessos de então o que resulta grosseiramente anti-histórico; visto a conexão
então existente entre poder material, político e espiritual (entre os
representantes do sacerdotium, do regnum e do imperium), tal
juízo é insustentável. Também, o núcleo central de toda a tendência era a
exaltação do religioso-eclesiástico, mas concretamente o papal, sobre o
mundano. Nem porém toda esta grave problemática, que veremos com detalhe dentro
deste complexo, não podemos sem mais nem negar a legitimidade histórica do dito
núcleo central.
b) Diante de tudo: o primado dogmático
de jurisdição, que não está condicionado pelo tempo histórico, é
totalmente independente desses falsos apoios. O fundamento bíblico (inclusa a
tendência orgânica de desenvolvimento, essencial à Igreja) não tem nada a ver
com eles. Que, por outra parte, também ditas falsificações tem contribuído a robustecer
a idéia do papado é outro testemunho histórico de como o caminho da revelação
pela historia e a forma de seu crescimento histórico tem estado sempre muito
unido à respectiva situação histórica. Um resultado desta evolução, "o
poder absoluto do papa no temporal," acabará na alta e tardia Idade
Média exagerando a implicação do eclesiástico e do temporal de uma forma que
resultará na maioria das vezes gravemente nociva para o religioso-eclesiástico.
Mas enquanto ao resultado essencial, o primado de jurisdição, também esta
evolução participa no mistério da felix culpa.
25 Responde a esta concepção o fato de que Pepino no
mesmo ano, fez que a liturgia romana fosse obrigatória para a Igreja Franca, substituindo
a antiga e venerável liturgia gálica.
26 No âmbito diretamente histórico-eclesiástico, já o Papa
Nicolau I, em seu longo escrito de protesto dirigido ao imperador Miguel III
(865), criticou aos gregos a falsificação das cartas pontifícias como algo que
sucedia frequentemente. As gestões dos concílios e as assembléias ocorridas sob
Fócio confirmam este juízo.
CE, 2005.