1. As perseguições dos cristãos foram principalmente obra do Estado. Mas na prática, como temos visto, também participaram de um ou outro modo em todas as camadas da povoação pagã.
Assim como os pregadores do cristianismo começaram muito pronto, como a coisa mais natural, a servir-se da palavra escrita (§ 16), também aos cultos pagãos (que na nova "filosofía" cristã viam ser um competidor) se sentiram em seguida obrigados a expressar por escrito sua aversão à religião cristã. Como contrapartida, os cultos cristãos começram por sua vez a refutar com escritos apologéticos próprios às acusações e cargos contra o cristianismo que se propagava ou se levavam ante os tribunais. Assim, à luta cruenta se somou a controvérsia literária.
2. Também nesta contenda se demonstrou, como se havía demonstrado na vida cotidiana dos cristãos e no heroísmo dos mártires, a clara superioridade da fé cristã.
Isto não quer dizer que a obra científico-espiritual dos apologetas cristãos fora sempre inatacavél, ou que nunca sucumbisse aos ataques literários pagãos, ou que às vezes não dera excessivo lugar a uma falsa retórica; tão pouco significa que as apreciações dos escritores cristãos reproduzam sempre com fidelidade da realidade pagã da época. Desgraçadamente, o despreocupado afã de afirmação dos escritores cristãos faz a pouco impossível tomar uma postura crítica segura. Também o cristianismo victorioso reaccionou mais tarde contra os nocivos restos da religião demoníaco-pagã tão radicalmente que quase destruiu todos os escritos e relatos pagãos. Por isso até nós só tem chegado escassos fragmentos de escritos pagãos autênticos. Pelo geral só conhecemos o que os cristãos dizem de seus adversários pagãos.
O juizo laudatorio antes expressado se refere somente à verdade del cristianismo, à força de sua fé e de seu amor, na medida em que se expressam nos escritos apologéticos. Ademais disto, com Tertuliano, Orígenes e Agostinho a obra cristã, no aspecto puramente espiritual, já supera decididamente a pagã.
O cristianismo encontrou seu primeiro adversário científico e realmente perigoso no filósofo Celso, que até o ano 178 escreveu A Palavra Verdadeira. Mas o antagonista literário mais relevante da nova religião foi o neoplatônico Porfírio (+ 304); seus quinze livros (perdidos) contra os cristãos apareceram durante o longo período de paz de fins do século III. O neoplatônico Hierocles induziu ao governador de Bitínia à perseguição, reinando Diocleciano. Também o imperador Juliano esteve influenciado pelo neoplatonismo.
3. Os defensores literários do cristianismo recebem o nome de apologetas (apología = defensa). Seus escritos apologéticos os dirigiam ao imperador, como Tertuliano, aos governadores; outros estão compostos em forma de diálogo (o diálogo de Justino com Trifón; o de Octávio com Minúcio Félix).
Nos escritos dos apologetas, o cristianismo, por vez primeira, passa diretamente ao ataque; se encontra em face ao Estado pagão a injustiça e a insensates da perseguição. Este caminho da ofensiva, explicavél pelas circunstâncias do momento, é precisamente o que já empreenderam os apologetas helênicos do judaísmo (por exemplo, Filón de Alexandría).
Todos os apologetas do século II anteriores a Tertuliano empregavam o grego (ou também o siríaco ou seja aramaico). O mais relevante de todos entre eles é o filósofo e mártir Justino de Flávia Neápolis (+ até 165), a antiga Siquém.
4. Justino teve um profundo entendimento dos valores "cristãos" que já estavam presentes no paganismo como espalhadas sementes (lógos spermatikós) da verdade plena, mas não deixou de afirmar claramente a superioridade essencial da "filosofía cristã." Escreveu duas apologías; nelas rebatem as calunias propagadas contra os cristãos (dando-os de passo informações interessantíssimas sobre a doutrina e sobre o culto) e defende valentemente o direito dos cristãos por diante do trono do imperador. Não obstante sua total submisão ao imperador, ele não roga, senão que, consciente da hidalguía de seu direito, exige. Em seu diálogo com o judeu Trifón, ao princípio do qual nos descreve seu passo pelas escolas filosóficas durante a verdade do cristianismo 38, ataca aos judeus; demonstra com todo detalhe que em Jesus se tem cumprido as profecias messiânicas. Lástima que neste escrito empregue com excesso à interpretação alegórica 39 das Escrituras.
5. Um ponto culminante do trabalho apologético o representa o primeiro cristão que escreve em latim: Septimio Flavio Tertuliano, do norte da África (nac. por volta de 160 e + depois de 220).
Como romano que era, procedeu de modo muito mais prático que os apologetas gregos. Como abrogado, estava experimentado em todos os resortes e procedimentos jurídicos diante dos tribunais. Era também um escritor extraordinariamente dotado e um poderoso orador, que dominava magistralmente o latím, comprimindo-o e na parte remodelando-o, até preenchê-lo do espírito cristão. Como homem, era um batalhador nato, sempre abrasado de um fogo inquietante, fanático e propugnador do rigorismo mais estrito, sem humildade, sem benevolência, sem paciência. Isto explica que terminara por separar-se da Igreja (como muito tarde em 207), a que despois atacou rudemente e cubriu das mais grosseiras suspeitas. Quase seguro, não foi sacerdote. Morreu fora da comunidade eclesial, como montanista (§ 17).
Apesar de todo, o trabalho intelectual que Tertuliano realizou em favor da Igreja é extraordinariamente importante. É o mais fecundo dos escritores eclesiásticos latinos anteriores a Agostinho e Jerônimo. Em seus escritos, fundamentais, atacou a todos os inimigos do cristianismo (pagãos, judeus e gnósticos). Sua obra mestra, o Apologeticum (197), dirigida aos governadores, foi escrita contra os pagãos. Com retórica forense rechaça um a um todos os ataques, suspeitas e acusações dirigidas contra os cristãos e sua religião, em especial as três grandes acusações de imoralidade, de ateísmo e de lesa majestade. A mais disto, faz resplandecer o íntimamente valioso da moral e a doutrina cristã, fazendo uma apologética no sentido positivo: os cristãos são bons, sua religião responde ótimamente às disposições mais profundas da alma humana não deformada ("a alma é naturalmente cristãs"). Ao mesmo tempo da magistralmente a volta ao argumento (in vos retorquebo) e demonstra que o mal é o paganismo. A vitória dos cristãos é seu poder sobre os demônios e seu martírio. O juízo final colocará de manifesto este triunfo.
Em sua argumentação já postula Tertuliano a introdução do princípio de equidade no direito positivo. Com ele prepara a grande e revolucionária penetração do espírito cristão no direito romano.
6 Muito similar ao Apologeticum de Tertuliano, mas mais suave, é o formoso diálogo Octavius de Minucio Félix, no qual o propiamente cristão é na verdade muito escasso. As acusações do interlocutor pagão e a defesa do interlocutor cristão mostram claramente que já então sobre o paganismo gravitava um importante e paralizador esceticismo.
a) Uma apología de particular interesse no século seguinte é a resposta que Orígenes dedicou à obra de Celso, até 248. Celso, com notavél perspicácia, havía observado certas dificuldades na doutrina e na tradição cristã e, exagerándo-as, as usou como meio de ataque, com ao qual também demonstrou que não tinha nem remota idéia da particularidade fundamental do cristianismo, do "Deus oculto," da "pobreza de espírito." Mas, apesar da refutação de Orígenes, seus argumentos se tem voltado a repetir de uma ou outra forma através dos séculos.
A princípios do século III cresce em geral a força espiritual da literatura cristã, tanto no Oriente como no Ocidente: os autores de apologias (Clemente de Alexandria, Tertuliano) escrevem ao mesmo tempo grandes obras filosófico-teológico-dogmáticas, que constituem pontos culminantes do pensamento cristão e que alcançam seu apogeu com Orígenes. No século IV, com a liberação, a literatura apologética, no sentido que havía tido até agora, passa naturalmente a segundo plano (cf. A cidade de Deus, de Agostinho, § 30).
b) Politicamente, o trabalho dos apologetas careceu de importância; seu influxo efetivo sobre Estado foi nulo. Sem embargo, estes escritores são relevantes na história universal graças à concepção básica do cristianismo que eles elaboraram e difundiram.
Os apologetas representam o primeiro intento de elaboração científica de uma visão cristã do mundo. Este intento se levou a cabo com meios insuficientes e resultou imperfeito; mas aí está e é básico para os trabalhos posteriores.
Os apologetas mostram o cristianismo como a religião do monoteísmo, da moralidade, da vitória sobre os demônios e da liberdade de consciência. Sua característica mais importante é a seguinte: desde que Paulo havía pregado o cristianismo principalmente como religião da redenção sobrenatural pela morte na cruz, os apologetas, por considerações de prudência (os destinatários já não eram judeus monoteístas, senão pagãos politeístas), destacam menos a pessoa de Jesus e o poder da graça. O cristianismo está concebido principalmente (¡não exclusivamente!) como religião do monoteísmo, do conhecimento verdadeiro (e da obra moralmente boa).
c) Esta concepção dos apologetas, se diz, havía "helenizado" o cristianismo, fazendo dele uma filosofía. É certo que na pregação cristã, pela qual os apologetas do século II abrogam, há uma falha muito importante: falta em sua maioria o propriamente paulino 40. Desde este angulo, o ponto de partida da teología destes escritores enlaça pouco ou quase nada com Agostinho (e com todos os autores da história eclesiástica que conectam com ele e com Paulo); enlaçam bem mais com a concepção racional da escolástica (e em certo modo do direito canônico). É certo também que as apologias do século II, e de forma inequívoca, acusam o problema típico do "âmbito grego," que a filosofía se põe decididamente a serviço da religião. Nela se manifesta com particular intensidade, ainda que às vezes um pouco velada pela dúvida e a incertidão, a problemática, que haverá de ser fatal para todo o cristianismo do Ocidente (e suas irradiações), do encontro do conhecimento antigo e a força da fé cristã, apontando-se assim o que fazer do filosofar específicamente cristão. Já Tertuliano havía formulado claramente o problema, perguntándo-se con certa actitude de rejeição: "Que tem que ver Atenas com Jerusalém?" Mas quando ele mesmo de alguma maneira se responde na linha do Credo, quia absurdum (palavras que textualmente não se encontram nele), há que pensar que se trata de uma paradoxa voluntariamente exagerada.
Tertuliano, como os demais apologetas, censurou mas não rechaçou a filosofia 41. O mesmo a utilizava para suas argumentações. Aprovava o natural na sua mensagem e no homem cristão. Neste sentido, o emprego da filosofía se demonstrava útil, legítimo, inclusive necessário.
Mas, nestes apologetas, por outra parte, se mantinha incólume toda a verdade e interioridade religiosa do cristianismo. Se nas apologías destes escritores a pessoa do Senhor passa a segundo plano e se faz faz insistir, como tem sido dito, no monoteísmo, não se trata mais que de uma decisão tática e calculada, que tem em conta a atitude espiritual dos adversários, politeístas. A comparação das obras não antipoliteístas de Tertuliano com os escritos meramente apologéticos o põe claramente de manifesto.
7. Neste sentido, os apologetas são representantes dessa "síntese" católica que tem sido até hoje a característica da teologia católica: insistem na possibilidade natural de conhecer algumas verdades fundamentais do cristianismo, mas antes de tudo anunciam o cristianismo como religião e como revelação; ao lado e mais alem da idéia de Deus como juiz que castiga está a boa nova de Deus como nosso Pai; há provas científicas, mas por cima de tudo está a fé e a profissão de fé; essencialmente unida à doutrina está a exigência de uma vida cristã.
Especial importancia tiveram os apologetas como propagadores da liberdade de conciência (expressão que não tem de ser entendida no sentido liberal moderno). Sua que fazer estava profundamente determinado pela exigência de que se devía fazer não o que ordenara o poder estatal, senão o que confessa a fe recebida pela revelação.
Os escritos dos apologetas constituem quase as únicas fontes de informação que possuímos sobre a teología cristã, inclusive sobre a piedade cristã do século II e boa parte do século III. Com isto se esquece fácilmente que nestas obras literárias (e filosóficas, no sentido indicado) só se reflete uma pequena parte do cristianismo de então. Con toda evidência se daqui, pois, a situación de que falamos na introdução. As comunidades cristãs no século II não eram escolas de filosofía. Sua vida estava baseada na fé e na oração, os martirologios o deixam entrever claramente. Mas muito pouco ou quase nada sabemos do modo concreto como a fé cristã foi pregada à massa dos incultos (que constituíam a maioria dos neófitos) nem do modo como suas grandes ideias e doutrinas se traduziram em suas cabeças e corações. Que também neles chegaram a deixar raízes —e talves raízes profundas—, concentrada na pessoa do Senhor vivo e exaltado, é coisa que podemos deduzir não só do Novo Testamento; também podemos documentá-la históricamente com o feito do martírio e com outras notícias isoladas. Em seu favor fala especialmente a difusão da doutrina de Jesus Cristo, verificada mais ou menos linealmente, mas que penetrou em todas as camadas da população e todas as províncias do império.
38 Como mestro ambulante chegou também a Roma, donde, entre outros, tevo como discípulo o assírio Taciano (autor de uma apologia, "Discurso aos gregos," até o ano 170) e foi combatido pelo filósofo cínico Crescêncio.
39 É dizer, uma exegesis que entende e interpreta o texto como uma alegoría ou comparação.
40 Sem embargo, Paulo também foi erudito então: quando o procônsul Publio Vigelio Saturnino, a 17-7-180, perguntou a doze cristãos de Sicília e de Numídia que classe de livros tinham em suas bibliotecas, responderam: "Os livros e cartas de Paulo, um homem justo."
41 Em troca, é exageradamente brusco ao rejeitar a arte. Nisto pode considerar-se como precursor de Bernardo de Claraval e de Calvino.
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