3. As Características das Leis da Igreja.
Aplicabilidade da Lei Canônica.
Qualquer discussão sobre as particularidades das leis canônicas deveriam necessariamente dirigir-se à pergunta acerca da aplicabilidade dos Santos Cânones à realidade atual. Os pontos de vista expressados sobre este assunto é de vital importância. Por um lado, estão aqueles quem veneram a letra os cânones; mas como já temos destacado "nada deve absolutizá-los" Jhon Meyendorff, "Problemas contemporâneos das leis canônicas ortodoxas" -The Greek Orthodox Theological Review-. Mas também devemos mencionar aqueles que negam a relevância de todo o corpo de cânones em seu estado actual. Obviamente, ambos pontos de vista são muito estreitos e tendem mais a polarizarem-se que a buscar uma verdadeira solução.
Afim de efectuar uma reconciliação entre os distintos pontos de vista ja mencionados, a pregunta que primeiro deveríamos fazer seria a seguinte: Como devem ser entendidos os Santos Cânones? Nicholas Afanasiev, em seu artigo titulado: "Os cânones da Igreja: Mutáveis ou Imutáveis?" oferece uma interessante fórmula à qual poderia ser, aceitável por parte das facções em conflito. (St Vladimir´s Theological Quaterly 54-68 -1967)
"Os cânones são um tipo de interpretação canônica dos dogmas para um momento particular na vida histórica da Igreja... Eles expressam a verdade acerca da ordem da vida da Igreja, mas não o faz expressando esta verdade em termos absolutos, senão alineando-se à circunstância particular da Igreja." Tal formulação reconhece a validez absoluta de todos os cânones, aos quais servem para expressar a verdadeira doutrina em algum ponto da história.
Algumas daquelas leis beneficentes, sem embargo, sobreviveram ao propósito pelo qual foram criadas e promulgadas, por ex: Aquelas que estão condicionadas por um tempo histórico; consequentemente, elas não podem expressar uma doutrina sem causar alguma distorção, simplesmente, porque elas foram promulgadas para outra época e contexto religioso, histórico ou cultural. Isto, por suposto, não deve dizer-se de todos os cânones, posto que a maioria expressam a recta doutrina tão claramente na actualidade, como quando foram adotados por primeira vez na Igreja, pelo conseguinte podemos dizer que entre alguns cânones continuam refletindo a recta doutrina, outros nem tanto, e porém devem serem compreendidos através de seu contexto histórico para chegá-los a captar cabalmente. O seguinte é um exemplo que tem a intenção de ilustrar este ponto.
É doutrina da Igreja que a Hierarquia eclesiástica é uma instituição ordenada por Deus, há cânones que expressam esta doutrina, mas em conformidade a época na que elas foram adotadas. O Canon V dos Santos Apóstolos, proíbe a um Bispo, presbítero ou diácono, deixar a sua esposa sob pretexto de causa religiosa, mas tempo mais tarde, por decisão do Sexto Sínodo Ecumênico, se introduz o celibato para o episcopado, e por tanto se decretou que todo aquele que fora ordenado como bispo, deveria previamente, deixar a sua esposa. Este Sínodo foi acertado quando deixou que o publicado no nuevo decreto: "não tinha nenhuma intenção de colocar de lado ou demolir nenhuma legislação determinada e fixada pelos Apóstolos, senão que o fazia em consideração à salvação e segurança da gente, e para seu progresso" (Ibid, p.63)
Nisto podemos ver que o Cânon Apostólico expressou uma doutrina concernente à Hierarquia eclesiástica, mas em conformidade com aquela época particular da vida da Igreja, e que quando ditas condições históricas mudaram, também o fez a maneira de expressar essa doutrina.
Significado Pastoral da Lei Canônica.
Os cânones também devem serem compreendidos com os lineamentos pastorais da Igreja, e como tais, eles serviram como modelos sobre os quais, a legislação eclesiástica, se baseou o mais possível. Os cânones dos Santos Pais, em particular, refletem a natureza claramente pastoral de seus conteúdos; evidentemente eles jamais imaginaram que ao escrever estes textos, estavam redatando as bases de um autêntico corpo jurídico. Na grande maioría dos casos, estes textos tiveram sua origem nas respostas que estes santos varões deram sobre algumas questões a aquelas pessoas que vinham em busca de seu conselho, e outros das origens destes textos, foram escritos donde eles expressaram seu ponto de vista sobre matérias de grande importância para a Igreja. Devido a grande sensibilidade pastoral destes homens, e da alta estima que por eles sentiram seus contemporâneos, é que estes Pais tiveram tanta influência sobre os homens de sua época e de futuras gerações. Como resultante deste fenômeno, as diretivas contidas em ditos textos, anteriores ao Sexto Sínodo Ecumênico, foram reconhecidos dentro do segundo Cânon, dando-os posto de igualdade em sua força de autoridade, que as leis que foram promulgadas durante o mesmo; é por esta razão que muitos dos cânones de São Basílio, estão dentro do promulgado no Sexto Sínodo Ecumênico com força de lei canônica.
Os Pais cujos cânones aparecem em nossas coleções de Direito Canônico, não tiveram escassa influência sobre o desenrolar e formação dos cânones promulgados nos Sínodos posteriores, pelo tanto, a natureza pastoral presente nos cânones dos Santos Pais, é mais que evidente. Os cânones somente são considerados como "Frutos do Espírito," cujo propósito é assistir ao gênero humano em seu caminho à Salvação. Certamente, tão elevado propósito pode ser apreciado quando estes são compreendidos em seu caráter de lineamentos pastorais da Igreja Universal (Católica Apostólica, não a protestante de Edir Macedo), e não como meros textos legislativos. Se alguém observa os cânones como escritos de ordem jurídica, estes diferiríam muito pouco daquelas leis rígidas e absolutas que são sustentadas com firmeza; mas na mudança nós devemos reconhecê-las como pautas pastorais, como em sua verdadeira dimensão são os cânones, razão pela qual foram promulgadas com flexibilidade e compaixão. Sob este paradigma, se nos faz um pouco mas compreensível o exercício da "obra" como prática dentro da Igreja Ortodoxa em nossos dias.
Conceito do acionar cristão
A diferença das leis seculares ou da Lei Mosaica, o propósito das leis eclesiásticas é a proteção espiritual de seus membros. É deste modo que a mera aplicação da letra da lei é substituida pelo sentido último ou "espírito da Lei," aderindo sempre a seus autênticos princípios. Este propósito, é o fator determinante quando se aplica uma lei, só se as circunstâncias de cada caso individual ou sem mérito. O espírito do amor, compreendido como compromisso com a perfeição espiritual do indivíduo, deve sempre prevalecer sobre a fria aplicação de um código legal.
A derrogação da letra da lei, pelo espírito da lei, é a pedra angular da instituição da "obra," exrcida únicamente sobre matérias que não sejam essenciais. Através da obra (ou o acionar cristão ) ao qual é uma exceção à regra geral, as consequências legais seguidas à violação da norma, caem sem efeito e são levantadas.
A "ação cristã "é concedida pela autoridade eclesiástica competente, e não tem tanto que ver com uma urgência ou necessidade de caráter pastoral, senão, mas bem, com o caráter compassivo da Igreja frente à fragilidade humana. Este carácter compassivo é justificado pela Igreja em seu ardente desejo de prevenir qualquer efeito adverso que poderia ocasionar a estrita observância da lei nas circunstâncias excepcionais. A premissa sob a qual uma excepção é concedida, é a do bem estar geral dos crentes. Esta premissa existe em quase todo sistema legal, mas sem lugar a dúvidas tem sua máxima expressão no Direito da Igreja Ortodoxa. Em seu caráter da lei da graça, os cânones, se caracterizam em primeira instância pelos atributos espirituais de COMPAIXÃO, SENSIBILIDADE PASTORAL e INDULGÊNCIA.
A "ação cristã" não é algo para ser aplicado ao azar ou arbitrariamente, seu acionar se rege por lineamentos definidos, aos quais devem ser estritamente observados pela autoridade eclesiástica competente. Primeiro e principal, não é possível plantear uma excepção a uma lei de reconhecimento e validade universal, unicamente a excepção pode ser concedida sobre aquelas leis que não estejam dotadas de tal autoridade, é só nesse caso que uma pessoa pode ser liberada ou eximida de cumprir com essa lei, sempre e quando se julgue espiritualmente beneficente para dito individuo.
O direito a exercer a " ação cristã" é prerrogativa tão só dos legisladores (Concilio o Santo Sínodo de Bispos). Este direito, pode a sua vez ser delegado a determinados bispos por meio de uma autorização do corpo sinodal. Esta delegação de funções, sem embargo, deve manejar-se dentro dos limites fixados pelos cânones e conforme expressa autorização de uma autoridade legislativa superior. (ver por ex.: o Canon II de Ancyra: "A si mesmo decretamos que os diáconos que tenham ofrecido sacrificios, aos ídolos pagãos, e logo reassumem, desfrutarão de algumas de suas honras, mas se abstenham de todo ministério sagrado, nenhum deles levará o pão e o cálice, nem farão proclamações; sem embargo, se algum bispo observar em algum deles arrependimento em sua mente e humilíssima disposição, o será lícito ao bispo, outorgar-lhe uma maior indulgência ou retirá-la" disto podemos deduzir, que a "ação cristã" deve ser tanto mais indulgente, ou tanto mais observante da regra segundo o caso particular, em consequência a "ação "é sempre um desvio da norma. O exercício da mesma cessa automaticamente, se sua causa não é justificada, ou se a base da aplicação descansa sobre fundamentos falsos.
Uma vez que a "ação" foi aplicada, a prática normativa é restaurada, tal qual, sem modificação alguma. É muito preciso deixar em claro o antedito, uma vez finalizada esta situação temporal de exceção às práticas normais da Igreja, o atuado durante o uso da "ação " não senta nenhum precedente legal ou canônico que obrigue a repetir esta situação de exceção frente a outros casos. (os quais deverão ser evaluados em forma particular pela autoridade eclesiástica competente)
A instituição da "ação cristã" foi bastante invocada ao longo da história da Igreja Ortodoxa; isto se deve em parte, às tendências liberais do pensamento dos ambientes culturais dentro do qual floresceu a Igreja Ortodoxa.
Ainda que a autoridade no exercício da "ação cristã" especialmente em matérias de grande importância, descansa sobre o Sínodo de bispos de cada Igreja Local, esta autoridade, como dissemos antes, pode ser delegada também a alguns bispos em forma individual.
O Sínodo Ecumênico, como administrador supremo do corpo legislativo e judicial da Igreja, é sem lugar a dúvidas, a autoridade de última instância no exercício da "ação cristã," este é único que pode alterar ou predominar sobre as decisões de qualquer autoridade eclesiástica subordinada ao mesmo. Enquanto à esfera da consciência, sem embargo, é o pai espiritual a quem se o confia a autoridade do exercício da "obra cristã," de acordo a seu bom juízo. Devemos recordar sempre que o fator determinante em sua aplicação, deverá ser sempre o bem-estar espiritual do penitente.
Disciplina Canônica.
Desde o âmbito da consciência mencionaremos algumas palavras finais respeito à disciplina canônica. Seguidamente da confissão sacramental de um penitente, o diretor espiritual determina os atos penitenciais (Epitimia) que os serão prescritos. Aqueles atos penitenciais, incluem maiormente jejuns, postrações, orações, atos de caridade, e em ocasiões muito excepcionais e graves, a excomunhão (que é a exclusão temporária da santa comunhão) entre outras penas.
Os atos penitenciais não devem serem confundidos com castigos em reparação a um mal cometido; eles não devem possuir nenhum elemento que denote uma intencionalidade de represália vingativa ao pecador; precisamente isso é ao contrário ao espírito e propósito da disciplina canônica, já que esta deve estar sempre dotada de um duplo caráter: pedagógico e pastoral, é por ele que se busca a correção e reforma do penitente arrependido, e por outro lado, a proteção da Comunidade frente à ação do pecado, em consequência, quando se trata de casos muito graves e especiais, se busca privar o pecador do aceso à Santa Comunhão por um tempo, para que possa tomar uma nítida e viva consciência acerca da gravidade de seu pecado. Se o pecado é público, e a comunidade está a tanto do corretivo imposto, ela cumpre a função de mostrar a essa Comunidade que há certos atos que por sua gravidade que são inadmissíveis.
A Igreja, que como bem sabemos, é o Corpo Místico de Cristo, dispõe de seus próprios meios para lograr a salvação de todos seus membros, e, ainda que a Igreja é simultaneamente uma Instituição divina e humana, em sua faceta terrena é, apesar de tudo, predominantemente espiritual.
Os Santos Cânones, conjuntamente com a Tradição Canônica emanada deles, será uma parte fundamental da vida terrena da Igreja.
Em conclusão, podemos afirmar que a função dos Santos Cânones e da Tradicão Canônica, é a de assegurar os meios externos de proteção, dentro da qual, a vida do espírito é nutrida e preservada.
BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA.
N. Athanasiev. "The Canons of the Church: Changeable or Unchangeable?" St. Vladimir's Theological Quarterly, 11(1967), pp. 54-68.
B. Archondonis. "A Common Code for the Orthodox Churches," Kanon I (1973), pp. 45-53.
D. Cummings, trans. The Rudder. Chicago: Orthodox Christian Educational Society, 1957.
Lewis J. Patsavos. The Canon Law of the Orthodox Catholic Church (Mimeographed Notes). Brookline, Mass.: Holy Cross Bookstore, 1975.
Henry R. Percival, Ed. The Seven Ecumenical Councils. "Nicene and Post-Nicene Fathers," Second Series, Vol. 14. Grand Rapids, Michigan: William B. Eerdmans Publishing Co., 1956.
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